
Entrevista
Patricia Pinho
Diretora-adjunta de Pesquisa do IPAM fala sobre a centralidade do olhar humano na conservação da Amazônia, os impactos da degradação florestal e a importância da justiça climática e da valorização dos saberes tradicionais. Defende uma bioeconomia inclusiva, critica a ausência de políticas de adaptação e aponta caminhos para uma agenda transformadora na COP30, incluindo o conceito de inflexão social como chave para a resiliência da floresta e de seus povos

Sobre
Patricia Pinho é diretora adjunta de Pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), doutorado em Ecologia Humana pela Universidade da Califórnia - Davis e pós-doutorado pela Universidade de Michigan e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Atua na interface entre mudanças climáticas, biodiversidade, justiça socioambiental e governança, com foco em populações indígenas, tradicionais e periféricas da Amazônia.
Sua linha de pesquisa parte da abordagem de sistemas socioecológicos para compreender como alterações nos serviços ecossistêmicos afetam o bem-estar humano em contextos de vulnerabilidade climática. Investiga ainda como os saberes e práticas tradicionais podem ser integrados como soluções sustentáveis e estratégias de resiliência regional. Foi autora principal de capítulos dos relatórios do IPCC, incluindo o AR6 e o relatório especial sobre 1,5 °C.
Atuou como pesquisadora associada do Stockholm Resilience Centre (Suécia), professora visitante na Universidade de Edimburgo (Escócia) e coordenadora científica do escritório regional do International Geosphere-Biosphere Programme. Lidera ou participa de projetos internacionais voltados à adaptação, bioeconomia e ciência cidadã, com destaque para iniciativas do Max Planck Institute, Gordon & Moore Foundation e União Europeia.
FCW Cultura Científica – Patrícia, você começou na biologia e depois foi para a ecologia humana, reunindo ciências ambientais e sociais. O que motivou essa mudança e como ela definiu sua atuação na conservação?
Patricia Pinho – Eu comecei minha graduação em Biologia, na Unesp de Rio Claro, e depois migrei para o curso na UFSCar de São Carlos. Desde o início me incomodava o fato de que os cursos abordavam espécies, interações e soluções ambientais, mas sem considerar o ser humano nas análises. Aquilo me parecia uma visão muito purista, como se os problemas ambientais pudessem ser tratados ignorando a dimensão humana – quando, na verdade, estamos diante de crises causadas justamente pela ação humana. Foi esse incômodo que me levou a me aproximar mais dessa dimensão humana. Já naquela época eu buscava entender como o ser humano interage com a natureza – tanto como agente de degradação quanto como parte da solução. Acredito fortemente na noção de Antropoceno – ou seja, de que já causamos impactos suficientes para caracterizar uma nova época geológica. Temos sinais fortes o bastante para compreender a dimensão da alteração humana no sistema terrestre. Essa alterações aceleradas, com transformações profundas, são dignas de uma época geológica.
FCW Cultura Científica – E como você começou a trabalhar com grupos tradicionais da Amazônia especificamente?
Patricia Pinho – Isso aconteceu depois da graduação, quando fui para a Amazônia como voluntária em um curso de ecologia tropical. Foi ali que tive contato com abordagens mais integradas, incluindo antropologia cultural. Me identifiquei imediatamente com essa perspectiva. A partir dessa experiência, elaborei um projeto de pesquisa e consegui entrar diretamente no doutorado na Universidade da Califórnia. Queria investigar a interface entre uso de recursos naturais, conservação e políticas públicas. Trabalhei com comunidades ribeirinhas na várzea amazônica, depois com populações indígenas. Passei a atuar com conhecimento tradicional, sempre considerando o ser humano como vetor profundo de transformação da paisagem. Hoje, meu foco é produzir conhecimento científico que possa influenciar políticas públicas, estratégias de governança e transformação social.
FCW Cultura Científica – Por que você considera fundamental incorporar esse olhar humano – especialmente de populações tradicionais, indígenas e periféricas – na construção de soluções para a crise climática?
Patricia Pinho – Porque o que está em jogo é a continuidade da vida como a conhecemos. As transformações ambientais já afetam o sistema hidrológico, o clima, a segurança alimentar e até a proliferação de doenças. Essas mudanças têm impactos profundos e, no Brasil, muitas vezes são silenciosas e subdocumentadas. O paradoxo é que os povos indígenas e as comunidades tradicionais da Amazônia estão entre os que menos contribuíram para a crise climática – e, no entanto, são os mais diretamente afetados por ela. E o que vemos é uma enorme ausência de políticas públicas que protejam esses territórios e populações. Ao mesmo tempo, quando se fala da Amazônia nos acordos internacionais e na ciência do clima, ela é vista como solução para a crise climática global. Evidências científicas robustas mostram que a floresta é essencial para o equilíbrio do clima planetário. No entanto, essa narrativa ignora o tecido social da região – as experiências, os modos de vida e os conhecimentos de quem sustenta a floresta em pé.
FCW Cultura Científica – Você é um dos autores de estudo publicado na revista Science que mostrou as causas e os impactos da degradação do que resta da floresta amazônica. Poderia falar um pouco sobre ele?
Patricia Pinho – Esse estudo do qual participei, liderado pelo Luciana Gatti, do INPE, e pelo David Lapola, da Unicamp, nasceu de uma inquietação no âmbito da rede Future Earth: por que ninguém estava falando sobre degradação na Amazônia? Investigamos os vetores dessa degradação e suas consequências imediatas para as populações locais. Constatamos que 38% da floresta amazônica restante já está degradada, com impactos diretos na vida das pessoas – indígenas, ribeirinhas e também urbanas, principalmente das periferias. Existe uma enorme assimetria: a Amazônia é solução para o mundo, mas os custos dessa função global recaem desproporcionalmente sobre quem vive lá.
Apesar disso, essas populações têm resistido com estratégias próprias, autônomas, para enfrentar múltiplas ameaças – sejam mudanças climáticas, pressões políticas ou perda de território. O que precisamos é apoiar, ampliar e reconhecer essas soluções locais. Infelizmente, temos visto retrocessos – como o marco temporal e projetos de lei que flexibilizam o licenciamento ambiental – que minam os direitos desses povos e comprometem a própria sustentabilidade da floresta.
FCW Cultura Científica – Que tipo de estratégias de enfrentamento essas comunidades têm desenvolvido? Você pode compartilhar algum exemplo concreto que seus estudos tenha revelado?
Patricia Pinho – Há milhares de exemplos. Um campo que tem ganhado atenção é o da sociobiodiversidade. Hoje se fala muito em “nova bioeconomia”, mas ela só é “nova” para quem quer transformá-la em mercado. Para os povos da Amazônia, essa economia baseada em saberes tradicionais sempre existiu – é uma “economia sombra”, porque não aparece nas estatísticas. Felizmente, iniciativas como a parceria entre IBGE, ICMBio e unidades de conservação na Amazônia começam a quantificar o valor dessa economia. Produtos como o açaí, a pupunha e a mandioca são resultado direto da domesticação e manejo por populações ameríndias. A diversidade da mandioca, por exemplo, está profundamente conectada a práticas culturais. No Alto Rio Negro, as mulheres manipulam as variedades da planta como parte de rituais de casamento e deslocamento entre territórios. Isso gera variabilidade genética, que por sua vez aumenta a resiliência da espécie frente a mudanças ambientais.
Esses saberes têm valor imensurável. Eles contribuem para a segurança alimentar, a biodiversidade e a adaptação às mudanças climáticas. Mas estão ameaçados por grandes secas, enchentes, perda de território e degradação cultural. A frequência e a intensidade desses eventos minam a capacidade de resposta das comunidades, mesmo quando elas têm práticas adaptativas. Já escrevemos sobre isso em 2015 e 2020. O tempo para agir é curto. Se não houver apoio político, reconhecimento legal e financiamento adequado, corremos o risco de perder esse patrimônio de conhecimento antes mesmo de compreendê-lo plenamente.
FCW Cultura Científica – Voltando ao estudo publicado na Science: você mencionou que 38% do que resta de floresta amazônica está degradado. Como vocês definem essa degradação? É diferente do desmatamento?
Patricia Pinho – Sim, é diferente. O desmatamento é a remoção completa da vegetação, enquanto a degradação envolve processos que mantêm a cobertura florestal, mas comprometem sua integridade ecológica. Isso inclui fogo, extração seletiva de madeira e mudanças no uso do solo, agravadas pelo aumento da temperatura e pela seca. O estudo se baseia em evidências acumuladas ao longo de décadas. Já nos anos 1990, o professor Carlos Nobre alertava para os riscos de savanização da Amazônia. O ecossistema vem se tornando mais seco e inflamável – o que é um sinal de que estamos nos aproximando de um ponto de inflexão ecológico.
Essas transformações têm implicações sociais gravíssimas. A degradação impacta diretamente a vida das pessoas: segurança alimentar, hídrica, saúde, cultura e permanência nos territórios. E muitos desses danos são não materiais – difíceis de mensurar, mas devastadores. Quando se perde o modo de vida, não há como permanecer. Por isso, precisamos incluir a Amazônia em agendas internacionais como a de perdas e danos. Além disso, vale lembrar: há setores que se beneficiam economicamente da degradação – com a exploração da madeira, uso do fogo, especulação de terra. Já a escala local só acumula prejuízos. Essa é uma das injustiças que buscamos expor com o estudo.
FCW Cultura Científica – Você poderia explicar a ideia de ponto de inflexão social que tem desenvolvido? Como ela se conecta ao contexto amazônico?
Patricia Pinho – Estou liderando no Brasil uma frente do Global Tipping Points Report dedicada à “Amazônia social”. A proposta é trazer a lente dos social tipping points – ou pontos de inflexão sociais – para complementar o debate ecológico. Assim como os sistemas naturais, as sociedades também podem atravessar inflexões abruptas ou graduais causadas por pressões cumulativas. No caso da Amazônia, vemos processos de inflexão social provocados por desmatamento, grilagem, violência, erosão de direitos e eventos climáticos extremos. Esses fatores têm gerado mudanças estruturais na vida de populações indígenas e tradicionais.
Nosso objetivo é mapear tanto os pontos de inflexão negativos quanto os positivos. Queremos entender quais transformações sociais podem ser catalisadoras de soluções – como o fortalecimento de lideranças locais, reconhecimento legal de territórios e ampliação do protagonismo das comunidades em políticas públicas. Identificar essas alavancas é essencial para frear a perda da floresta e construir resiliência global. A Amazônia social é parte inseparável da Amazônia ecológica – e é justamente ali que podemos encontrar caminhos inovadores para enfrentar a crise climática.
FCW Cultura Científica – Um dos pontos que você vem destacando é a ausência de políticas públicas de adaptação na Amazônia. Quais são as lacunas mais urgentes a serem preenchidas?
Patrícia Pinho – Existem grandes lacunas quando falamos em adaptação na Amazônia. Uma delas é a capacidade de compreender o que já existe em termos de adaptação e também os limites dessas ações. A gente sabe, por evidências recentes, que há um gargalo global entre o que precisa ser feito para enfrentar os riscos climáticos e o que de fato vem sendo realizado – e isso se agrava em regiões como a Amazônia, que já são historicamente marginalizadas.
Nesse contexto, as vulnerabilidades se tornam ainda mais acentuadas. Hoje já é evidente que os impactos climáticos afetam fortemente a produção de alimentos, por exemplo – seja pelo aumento do preço, pela redução da produtividade ou pela escassez de recursos hídricos. E isso gera consequências severas, tanto materiais quanto imateriais. Além das perdas econômicas, há também perdas culturais, que comprometem modos de vida e colocam em risco a saúde, o bem-estar e a própria possibilidade de uma existência digna nessas regiões.
FCW Cultura Científica – A COP30 colocará a Amazônia no centro do debate climático global. O que seria uma agenda realmente transformadora para se levar à conferência? E o que está em risco se essa oportunidade for perdida?
Patrícia Pinho – A COP30 é uma grande oportunidade para que o mundo volte seus olhos à Amazônia. Embora a conferência não seja “sobre” a Amazônia, ela vai acontecer dentro da floresta – que é, sem dúvida, um dos pilares fundamentais no enfrentamento da crise climática. Temas estratégicos estarão em pauta, como o “global stocktake”, que revisa os compromissos dos países na redução de emissões. Isso representa uma chance concreta de pressionar por ações que evitem que ecossistemas como a Amazônia – e outros que estão em pontos críticos – atinjam o chamado tipping point, ou ponto de inflexão.
Além disso, precisamos falar seriamente sobre adaptação, perdas e danos e os fundos climáticos: onde serão alocados, quem será beneficiado e como garantir justiça para as populações mais vulneráveis. São pessoas que enfrentam as adversidades das mudanças climáticas de forma desproporcional, embora pouco tenham contribuído para o problema. Essas assimetrias existem tanto entre países – especialmente entre o Norte Global e o Sul Global – quanto dentro de cada país.
A COP também precisa ser uma plataforma para fortalecer mecanismos de apoio à adaptação em diferentes escalas de tempo, especialmente no nível local, articulando diretrizes globais com realidades regionais. Essa é uma agenda urgente e inadiável.

Revista FCW Cultura Científica v. 3 n.3 Set - Dez 2025



















