
Entrevista
Reflexos digitais
A nova edição da Revista FCW Cultura Científica examina os impactos profundos das redes sociais sobre a vida contemporânea, destacando sua evolução de ferramentas de conexão para ambientes de polarização, vigilância e manipulação. Os entrevistados refletem sobre os efeitos para a saúde, educação, política e sociedade da cultura de engajamento e da lógica algorítmica

Sobre
Antes promotoras do diálogo, as redes sociais favorecem o isolamento, o individualismo, a radicalização e o esvaziamento da arena pública. Nesta edição, convidamos à crítica e à imaginação de formas mais saudáveis e democráticas de habitar o mundo digital, reunindo contribuições de diversas áreas da ciência para repensar o futuro das relações sociais mediadas pela tecnologia.
Há duas décadas, as redes sociais têm transformado o modo como vivemos, inicialmente como ferramentas de comunicação, encurtando distâncias e rompendo barreiras geográficas. Por meio delas, reencontramos amigos de infância e acompanhamos a vida de familiares distantes. Elas deram voz a quem não tinha espaço na mídia, permitiram mobilizações sociais importantes, ampliaram o acesso à informação e expandiram o ato de se comunicar.
Mas, com o tempo, esse terreno fértil para o diálogo e o encontro passou a ser usado com outros fins. O que era espaço de aproximação virou palco para a publicidade, a monetização por meio de algoritmos, a manipulação de dados e a segmentação dos usuários em nichos de consumo e em bolhas ideológicas.
Hoje, as redes sociais são também arenas de confronto. Tornaram-se instrumentos para a disseminação de discursos de ódio, campanhas de desinformação e estratégias políticas que minam os fundamentos da democracia. Grupos extremistas encontram nelas canais diretos para arregimentar seguidores, espalhar intolerância e desacreditar instituições e a ciência. A lógica do engajamento – que prioriza o sensacional, o polêmico, o indignante – favorece a radicalização e incentiva uma convivência social marcada pelo conflito, e não pelo debate.
As redes sociais também têm sido associadas ao aumento de problemas de saúde mental entre os jovens. O uso excessivo dessas plataformas pode intensificar sentimentos de inadequação, ansiedade e depressão, sobretudo pela exposição constante a padrões irreais de beleza, sucesso e felicidade. Além disso, o mecanismo de curtidas e validação social cria uma dependência emocional que afeta a autoestima e dificulta o desenvolvimento de relações interpessoais saudáveis no mundo offline.
Se antes as redes pareciam ampliar os laços sociais, hoje nos deparamos com uma sociedade cada vez mais fragmentada. A promessa de maior conexão revelou-se, em muitos aspectos, uma ilusão: estamos cercados de vozes, mas cada vez mais distantes uns dos outros.
As redes sociais tornaram-se espelhos deformantes onde o mundo reaparece segundo lógicas novas e pouco visíveis. Não se trata apenas de tecnologia, mas da construção de uma nova ontologia do social, em que as relações humanas são mediadas por sistemas que capturam, organizam e devolvem a vida sob formas numéricas e cada vez mais abstratas.
Se em outras épocas a técnica era extensão do corpo, hoje ela parece ter se tornado matriz da mente. A máquina não apenas nos serve: ela nos recria. O instrumento assume a feição de quem o utiliza e nos tornamos à imagem e semelhança das máquinas com as quais convivemos. O sujeito digital – fragmentado, veloz, impaciente – é um reflexo dessa nova moldura.
Os clássicos da filosofia britânica – Hume, Locke, Bacon – aspiravam uma razão empírica, clara, desembaraçada de mitos. Mas talvez seja justamente o excesso de clareza que nos ofusca e desorienta. O apelo metafísico ressurge em forma de algoritmo, de estatística, de predição: a crença em que tudo pode ser medido, previsto, convertido em dados. A interioridade – aquilo que em nós hesita, demora e não se deixa calcular – parece em retirada.
As redes sociais recortam a sociedade como um bisturi digital. Produzem laços, mas também cancelamentos. Promovem visibilidade, mas frequentemente à custa da profundidade. No lugar da praça pública, temos corredores espelhados onde cada um é devolvido a si mesmo, em bolhas cuidadosamente desenhadas para maximizar o engajamento. A inteligência, nesse ambiente, é moldada não para o pensamento, mas para a performance. Não para a escuta, mas para a resposta rápida.
Walter Benjamin advertia que o progresso técnico rompeu a tradição da narrativa: já não contamos histórias, apenas colecionamos impressões. Merleau-Ponty, por sua vez, viu na fotografia uma revolução perceptiva – o olhar humano passou a enxergar como a lente. A tecnologia modifica o modo como percebemos o mundo, pois desloca o olhar da experiência vivida para uma mediação técnica. O que dizer, então, das redes sociais, que não apenas alteram o olhar, mas moldam o próprio desejo de ver?
Perdemos o sentido da verticalidade. O tempo já não se acumula: escorre. O pensamento já não se aprofunda: salta. E entre os mais jovens, especialmente, há uma inquietação crônica, um desconforto com o silêncio, uma desconfiança da lentidão. O mundo se tornou plano, e com ele a experiência.
Este número da Revista FCW Cultura Científica é um convite à reflexão. As entrevistas com Letícia Cesarino, Luis Felipe Miguel, Marcelo Soares, Marie Santini e Telma Vinha traçam um panorama importante de como as redes sociais mudaram profundamente a maneira como as pessoas se comunicam e se relacionam. Essas transformações não são apenas conjunturais ou passageiras. Elas reconfiguram os modos de existir em sociedade, o tecido das relações cotidianas, o próprio exercício da cidadania.
Os entrevistados destacam que o ambiente das redes impõe novas dinâmicas ao debate público, esvaziando os espaços de escuta e favorecendo a polarização emocional. A velocidade das interações, combinada à lógica da viralização, compromete a complexidade dos temas e encoraja posicionamentos cada vez mais radicais, instantâneos, desprovidos de mediação. A consequência é um cenário onde a informação circula mais, mas compreende-se menos.
Diante desse panorama, torna-se urgente pensar alternativas. Ao reunir perspectivas da sociologia, da antropologia, da psicologia, da ciência política, da filosofia, da educação e da comunicação, esta edição busca lançar luz sobre o presente sem cair no determinismo tecnológico nem na nostalgia do passado. A cultura científica, aqui, é convocada como ferramenta de crítica, mas também como instrumento de criação: um modo de imaginar formas mais justas e humanas de habitar o espaço digital. Refletir sobre as redes é, hoje, pensar sobre nós mesmos – e sobre o tipo de sociedade que desejamos construir.
Boa leitura!
Carlos Vogt
Editor-chefe
Através do espelho
Como a consciência o tempo
sem ter consciência
de si mesmo
é enxuto
relativos
um ao outro
cada um
em si mesmo
é absoluto
Carlos Vogt, poema de A Cidades e os Livros, publicado em cantografia.com.br.