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Abertura

Redes de fragmentação social

Redes sociais surgiram para aproximar usuários, facilitar a comunicação e o acesso à informação, mas acabaram ampliando a ansiedade e depressão e se transformaram em campos de batalha para conflitos políticos, incubadoras de fake news e amplificadoras de discursos de ódio, de intolerância e antidemocráticos

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Sobre

O toque da notificação substitui o toque humano. A curtida dispensa a conversa. A presença constante nas telas rouba a presença real no mundo. Sob o pretexto da liberdade de expressão, as redes sociais se transformam em arenas de hostilidade, onde gritar é mais eficaz do que argumentar. A rapidez da postagem atropela a reflexão, e o julgamento instantâneo substitui qualquer tentativa de compreensão.

Em 14 de janeiro de 2008, o jornal inglês The Guardian publicou um artigo sobre a rede social Facebook, fundada quatro anos antes e que estava na metade da primeira centena de milhões de usuários, a maioria ainda nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido.

 

“Eu desprezo o Facebook. Esse negócio se descreve como ‘uma ferramenta social que conecta você com as pessoas ao seu redor’, mas por que eu precisaria de um computador para me conectar com as pessoas ao meu redor? Por que meus relacionamentos deveriam ser mediados por um bando de supernerds na Califórnia? E o Facebook realmente conecta as pessoas? Ou será que ele nos desconecta, já que, em vez de fazer algo prazeroso como conversar, comer, dançar e beber com meus amigos, estou apenas enviando bilhetes mal escritos e fotos engraçadas pelo ciberespaço, enquanto estou preso à minha mesa? Longe de nos conectar, o Facebook nos isola”, escreveu o autor do artigo, Tom Hodgkinson, escritor e editor da revista The Idler. 


Apesar de incisivo, a opinião de Hodgkinson não fez diferença. Desde então, o Facebook somou mais de 3 bilhões de usuários, além de outros 4 bilhões em suas plataformas Instagram e WhatsApp, esta última surgida como veículo de troca de mensagens instantâneas mas que depois agregou grupos, comunidades, publicidade, comunicações indesejadas e tudo o mais que as outras redes sociais oferecem. 


As redes não começaram com o Facebook. Elas têm raízes na década de 1980, quando os Bulletin Board Systems (BBS) permitiam que usuários trocassem mensagens e arquivos por meio de conexões discadas. Na década seguinte, na esteira da invenção da web, surgiram comunidades como GeoCities e fóruns que pavimentaram o caminho para plataformas focadas em socialização. O MySpace, lançado em 2003, se popularizou entre músicos e jovens, e o Orkut, de 2004, foi muito usado no Brasil e na Índia. Em 2007, a Apple lançou o iPhone, com tela sensível ao toque e capacidade de navegar pela internet, trocar mensagens e imagens e acessar as redes sociais. Em 2008, o Google lançou o sistema operacional Android e, no ano seguinte, o WhatsApp foi criado.


Desde então, como se costuma dizer, muita coisa mudou. O mundo foi derrubado por uma crise financeira, nocauteado por uma pandemia e agora se vê diante de uma ameaça maior que as duas juntas, a crise climática. Vimos a eleição de Barack Obama e sua reeleição; as duas eleições de Donald Trump; a Primavera Árabe; a morte de Osama bin Laden; a Guerra na Síria; a ascensão do Estado Islâmico; o acidente nuclear de Fukushima; o Brexit; o impeachment de Dilma Rousseff; a ascensão e a inelegibilidade de Jair Bolsonaro; o retorno de Lula; o avanço do populismo, do extremismo e das crises democráticas; a invasão da Ucrânia pela Rússia; e o grande avanço da inteligência artificial. 


Acompanhamos tudo isso. Por onde? Por jornais e noticiários na TV, mas cada vez menos. Pela internet e redes sociais, cada vez mais. A comunicação se tornou digital e instantânea. O papel foi substituído pelas telas, primeiro dos computadores e, depois, dos telefones, que viraram celulares e, em seguida, smartphones. Ao lado – e ao redor – de todos os principais acontecimentos das últimas duas décadas, está a explosão no uso das redes sociais, um dos fenômenos mais marcantes do século 21. Em menos de 20 anos, as redes sociais se expandiram para os bolsos e bolsas de pessoas em todo o mundo. Segundo estimativas, 5,2 bilhões, cerca de 64% da população mundial, atualmente usam redes sociais. 


Essas plataformas facilitaram a comunicação entre pessoas e grupos, encurtaram distâncias, permitiram o compartilhamento instantâneo de informações e fortaleceram relações interpessoais. Elas também ampliaram o acesso à informação, permitindo que vozes antes marginalizadas ganhassem visibilidade e espaço no debate público. Movimentos sociais, causas humanitárias e campanhas de conscientização encontraram nas redes um canal direto com a sociedade, mobilizando apoios. Ao romper os monopólios tradicionais da mídia, as plataformas possibilitaram uma circulação mais diversa de narrativas, expandindo o repertório de visões disponíveis ao público.


As redes sociais também abriram novas oportunidades econômicas e profissionais, fomentando o empreendedorismo digital e a economia criativa. Pequenos negócios, artistas e produtores de conteúdo independentes passaram a contar com ferramentas eficazes para divulgar seu trabalho, alcançar públicos específicos e gerar renda. A conectividade constante e a troca contínua de experiências também estimularam colaborações e inovações em escala global, acelerando transformações nas mais diversas áreas.


Mas se as redes sociais aproximam vozes distantes, elas afastam silêncios próximos. O toque da notificação substitui o toque humano; a curtida dispensa a conversa; a presença constante nas telas rouba a presença real no mundo. Sob o pretexto da liberdade de expressão, as redes se transformam em arenas de hostilidade, onde gritar é mais eficaz do que argumentar. A rapidez da postagem atropela a reflexão, e o julgamento instantâneo substitui qualquer tentativa de compreensão. Surgem então os linchamentos morais, os tribunais da indignação, o prazer perverso de destruir reputações em praça pública. 


A utopia digital cede lugar a uma distopia cotidiana, disfarçada de conveniência e conexão. Vende-se intimidade, mas entrega-se vigilância. Vivemos imersos em um ruído incessante, onde a atenção é explorada, disputada e monetizada como nunca antes. As redes, que um dia se anunciaram como janelas para o mundo, hoje parecem mais espelhos – e nem sempre devolvem reflexos fiéis. Diante desse cenário, o desafio maior talvez seja recuperar o silêncio, o tempo, e a verdade. Desconectar, para enfim reencontrar-se.


O impacto não se limita ao ambiente virtual. Pesquisas mostram uma correlação preocupante entre o uso intensivo das redes e o aumento de casos de ansiedade, solidão e depressão, especialmente entre jovens, chegando até mesmo a desafios que resultam em mortes. A lógica algorítmica das plataformas, voltada ao engajamento a qualquer custo, prioriza conteúdos extremos, polarizadores ou sensacionalistas – alimentando uma espiral emocional que prende o usuário e distorce sua percepção da realidade. A busca por curtidas e validação social transforma a vida em vitrine, gerando frustração, comparação constante e uma sensação crônica de inadequação.


No campo político, o cenário também é alarmante. As redes sociais deixaram de ser apenas ferramentas de mobilização para se tornarem espaços de radicalização e manipulação. Fake news se espalham mais rápido do que fatos, impulsionadas por robôs e campanhas coordenadas. O debate público, cada vez mais contaminado por agressões e desinformação, perde qualidade e profundidade. Enquanto isso, as grandes empresas de tecnologia que controlam as redes relutam em assumir a responsabilidade pelos danos causados, alegando neutralidade e liberdade de expressão.


No centro dessa engrenagem estão os algoritmos de inteligência artificial, cujo objetivo principal é manter o usuário conectado o maior tempo possível. Mas essa lógica de retenção não é neutra: ela é moldada por interesses comerciais, priorizando conteúdos que geram mais cliques, comentários e compartilhamentos, independentemente da veracidade ou qualidade. O que importa é a atenção, que é vendida aos anunciantes. O faturamento se sobrepõe ao bem-estar do usuário e a propaganda – cada vez mais personalizada e invasiva – se infiltra em todos os aspectos da experiência digital. Não é coincidência que discursos de ódio, fake news e sensacionalismo prosperem: são altamente lucrativos dentro dessa arquitetura da vigilância e do consumo.


Nesse ecossistema movido por curtidas (likes), os influenciadores digitais ocupam posição central. Vendem estilos de vida, opiniões, produtos e ideologias, na maior parte das vezes sem transparência, preparo ou compromisso ético. A autoridade que conquistam junto a milhões de seguidores não vem do conhecimento ou mesmo da experiência, mas da popularidade, o que torna tênue a linha entre informação e opinião disfarçada, entre verdade e performance. Muitos promovem padrões irreais de sucesso, beleza e felicidade, alimentando a insegurança dos seguidores e reforçando ciclos de consumo desenfreado. Outros propagam desinformação, pseudociência e teorias conspiratórias, influenciando decisões que vão da saúde à política. Em um ambiente onde autenticidade é um produto e a influência virou moeda, o impacto psicológico e social dessa relação de idolatria digital se mostra cada vez mais preocupante.


Enquanto a atenção do público adulto e da mídia se concentra nas grandes plataformas, como Instagram e TikTok, uma parte significativa da vida digital dos jovens ocorre em espaços menos visíveis – e, por isso mesmo, menos regulados. Plataformas como Discord, originalmente criada para comunidades de jogos, transformaram-se em universos paralelos, onde grupos formam comunidades fechadas, imunes ao olhar dos pais, educadores e autoridades. Nessas redes, circulam de conversas inofensivas a conteúdos violentos, discurso extremista, pornografia e tráfico de dados pessoais. A linguagem própria, o uso intensivo de memes e a estrutura em servidores privados criam uma dinâmica de pertencimento que, ao mesmo tempo que acolhe, pode também facilitar o aliciamento, o bullying e a radicalização. Trata-se de uma fronteira digital pouco explorada, mas crucial para entender os riscos contemporâneos da socialização online.


Além das redes sociais tradicionais, plataformas de comunicação como WhatsApp e Telegram também desempenham papéis cruciais nesse cenário de polarização e desinformação. Enquanto o WhatsApp, com sua popularidade massiva, se tornou um terreno fértil para a disseminação de fake news e boatos, o Telegram se destaca por abrigar grupos extremistas e teorias conspiratórias, onde a falta de regulação facilita a troca de conteúdos proibidos e discursos de ódio. 


“O que torna esses espaços tão perigosos não é apenas o conteúdo explícito, mas o fato de funcionarem como locais de escuta para os adolescentes. Em nossas pesquisas, os jovens frequentemente relatam que os adultos não os escutam – nem os pais, nem os professores. Nas comunidades virtuais, os adolescentes encontram locais de escuta, onde são compreendidos pelos outros usuários. São o que chamamos de câmaras de eco”, disse a professora Telma Vinha, coordenadora do Grupo de Estudos Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública da Unicamp, em outra entrevista nesta edição. 


Transformação da esfera pública


O conceito de esfera pública foi desenvolvido pelo filósofo alemão Jürgen Habermas nos anos 1960. A esfera pública seria o espaço em que cidadãos se reúnem para debater assuntos de interesse comum, trocando argumentos racionais de maneira livre, sem coerção – um dos pilares essenciais da democracia. Com o advento da internet e, especialmente, das redes sociais, muitos acreditaram que esse espaço seria ampliado, democratizando o acesso ao debate público.


Inicialmente, plataformas como Facebook, Twitter e YouTube pareciam cumprir essa promessa, oferecendo canais diretos para a participação cidadã e a mobilização de movimentos sociais. No entanto, a realidade se mostrou mais complexa e o ideal habermasiano de uma esfera pública única e racional deu lugar a múltiplas esferas públicas fragmentadas, muitas vezes isoladas e conflitantes, como destacou a filósofa norte-americana Nancy Fraser. As redes sociais, em vez de promover um debate aberto e construtivo, frequentemente priorizam o conteúdo que gera mais emoções (como raiva e indignação) em detrimento de discussões racionais. Elas fragmentam o público em bolhas ideológicas, cada uma com sua própria “verdade” e reduzem o tempo de atenção, dificultando reflexões mais profundas. 


Inicialmente vistas como espaços de inovação e aproximação, com o tempo as redes sociais se transformaram em campos de batalha para conflitos políticos, incubadoras de desinformação e amplificadoras de discursos de ódio, fortalecendo movimentos populistas e da extrema direita ao redor do mundo. O que parecia uma revolução digital se revelou um espaço onde promessas de conexão e liberdade deram lugar a uma realidade marcada pela fragmentação, manipulação e pela incessante busca por atenção.


Descobrimos que, ao mesmo tempo em que conectam, as redes também isolam. A premissa de proximidade, de manter amigos por perto e de criar novas comunidades esconde uma dinâmica paradoxal: quanto mais tempo passamos online, menos vínculos profundos cultivamos fora das telas. As interações digitais, superficiais e filtradas, substituem os encontros reais, empobrecem a empatia e reforçam bolhas de pensamento. O que era para ser um espaço de diversidade e troca se transforma em um espelho de nossas próprias crenças, alimentado por algoritmos que nos mostram apenas o que queremos ver – e, com frequência, o que mais nos irrita ou indigna, pois isso gera mais engajamento.


“No mundo digital, surgem novos intermediários: os influenciadores, as ‘bolhas’ construídas nesses ambientes virtuais. São territórios virtuais muito menos regulados do que os territórios do mundo pré-digital e acabamos delegando a esses novos intermediários parte dos nossos próprios processos mentais – inclusive processos fundamentais, como a produção da verdade, a percepção do mundo, o próprio acesso ao real”, disse a professora Letícia Cesarino, coordenadora do Laboratório de Humanidades Digitais na Universidade Federal de Santa Catarina. 


Ao oferecerem espaço para a livre expressão, as redes frequentemente alimentam ambientes tóxicos. A ausência de mediação e a cultura do anonimato tornam comuns o linchamento virtual, o discurso de ódio e o cyberbullying. A crítica vira ataque, o debate vira guerra, e a vulnerabilidade de muitos é explorada como espetáculo. E, quando a lógica da viralização supera qualquer senso de responsabilidade, conteúdos perigosos ou criminosos se espalham com velocidade assustadora.


Vivemos uma era em que a atenção virou moeda e a verdade, um detalhe negociável. O tempo que passamos nas redes é cuidadosamente calculado para servir a interesses econômicos, não ao bem-estar coletivo. A privacidade se tornou um produto obsoleto: nossas emoções, preferências e até vulnerabilidades são continuamente coletadas, processadas e vendidas. Em meio a tudo isso, cresce uma sensação de exaustão digital, como se estivéssemos presos a uma máquina que não pode ser desligada. Pensar criticamente sobre o papel das redes em nossas vidas, e repensar as regras do jogo digital, tornou-se uma urgência social e política.


“As redes sociais, com seus algoritmos e com o treinamento das máquinas para entender e direcionar o comportamento dos usuários, nos insulam em comunidades restritas, onde as verdades são incontestáveis. Dentro desses grupos, há pouca ou nenhuma interação com o contraditório. O pertencimento ao grupo vem com uma forte pressão para aceitar dogmas compartilhados. Para as plataformas, isso se tornou um modelo extremamente lucrativo, e elas defendem esse sistema com unhas e dentes. Esse tipo de ambiente, que evita o confronto com outras narrativas, permite que ideias absurdas ganhem o status de ‘verdade absoluta’ dentro desses nichos. O que a literatura chama de fake news surge aí. Nas redes sociais, qualquer discurso, sem o devido embasamento, pode ser tratado como verdade, independentemente da sua qualidade ou veracidade. O jornalismo profissional, a ciência, a escola – essas instituições perderam sua autoridade, e hoje tudo virou apenas opinião”, disse o professor Luis Felipe Miguel, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades da Universidade de Brasília, em entrevista nesta edição da Revista FCW Cultura Científica


Entre os muitos efeitos colaterais das redes sociais, talvez o mais insidioso seja o enfraquecimento do senso crítico, que precisa de tempo, silêncio e contraste para se desenvolver. No fluxo ininterrupto de informações, opiniões e certezas instantâneas, pensar se torna um ato contracorrente. A lógica das redes valoriza a reação imediata, não a ponderação; o slogan, não a dúvida; o alinhamento automático, não a reflexão autônoma. 


Pouco importa se algo é verdadeiro, coerente ou justo – o que importa é se viraliza. E nesse ambiente em que tudo se apresenta com igual peso, a distinção entre o essencial e o descartável se dissolve. O pensamento superficial se instala, alimentado por uma overdose de estímulos que impede qualquer aprofundamento. Como exercitar o juízo quando tudo é ruído, e a própria dúvida é vista como fraqueza? A cultura digital molda mentes apressadas, ansiosas por pertencimento, mas pouco habituadas ao confronto com a complexidade. E sem senso crítico, deixamos de ser sujeitos. Passamos a ser apenas alvos, cliques e estatísticas.



 




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Revista FCW Cultura Científica v. 3 n.2 Jun - Ago 2025

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