
Entrevista
Letícia Cesarino
Coordenadora do Laboratório de Humanidades Digitais na UFSC analisa como as redes sociais transformam a política e a sociedade ao criar ambientes altamente personalizados e acelerados, baseados na lógica algorítmica. Os mundos digitalmente mediados favorecem a polarização, dificultam o consenso democrático e são tão diferentes entre si que um se torna o inverso do outro

Sobre
Letícia Cesarino graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2003) e concluiu mestrado em Antropologia Social na Universidade de Brasília (UnB, 2006). Em 2013, defendeu tese de doutorado em Antropologia na University of California – Berkeley, sob supervisão de Cori Hayden e com bolsa Capes-Fulbright.
Durante o doutorado, realizou pesquisas de campo no Brasil, em Mali, Gana e Burkina Faso. Em 2014, foi contratada pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, onde atua como professora e pesquisadora na graduação e na pós-graduação. Especializou-se no campo de estudos sociais da ciência e da tecnologia, com ênfase em teorias de sistemas e, mais recentemente, antropologia digital.
É coordenadora do Laboratório de Humanidades Digitais na Universidade Federal de Santa Catarina (LABHDUFSC), que desenvolve métodos mistos (qualitativos e computacionais) em colaboração com o LABHD da Universidade Federal da Bahia. É autora de "O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital" (UBU, 2022) e pode ser encontrada no Bluesky em @letcesar.
FCW Cultura Científica – Professora Leticia, por que as redes sociais são tão populares? Desde 2010, elas se tornaram partes indissociáveis da sociedade, inicialmente usadas para a troca de mensagens, fotos ou para encontrar amigos e parentes, mas hoje contam com grupos, comunidades e uma variedade de usos que parece inesgotável.
Letícia Cesarino – Há diversos fatores, mas eu tendo a olhar o fenômeno do ponto de vista da infraestrutura técnica e da interação dessa infraestrutura com agentes humanos. O ano que você mencionou, 2010, é muito significativo, porque foi a partir daí que ocorreu um salto na relação das pessoas no Brasil – e em outros países – com esses dispositivos. É aí que costumamos demarcar o início do modelo de internet plataformizada. Trata-se de um modelo relativamente recente, posterior à crise de 2008.
Antes disso, embora já existissem alguns aplicativos ou sites similares – como o Facebook, por exemplo –, eles ainda não operavam nesse modelo, que envolve uma integração entre diversas plataformas, como os diferentes aplicativos para celular. É exatamente nesse período que o smartphone se torna mais acessível, mais barato, e se dissemina em países como o Brasil, muito em função dos pacotes de dados gratuitos. Aplicativos como Facebook e WhatsApp se tornam relativamente baratos para a população. Há, portanto, todo um processo de colonização do cotidiano por esses dispositivos – tanto o hardware, que é o smartphone, quanto o software, que são os aplicativos nesse modelo plataformizado, sustentado por uma economia de dados e da atenção.
Aquele potencial de captura do usuário pelos algoritmos, que já existia no ciclo anterior, é então potencializado, porque agora temos muito mais dados sendo produzidos e muito mais aplicativos nos “encurralando”, digamos assim, nesse processo de captura. E isso não envolve apenas redes sociais, mas também aplicativos como o Uber ou iFood, que se tornam profundamente integrados ao nosso cotidiano, ou ainda os aplicativos de relacionamento. Isso vai se expandindo e os próprios aplicativos passam a se especializar. As redes sociais também se especializam: o Instagram, por exemplo, passa a ter um perfil voltado ao empreendedorismo, algo que não tinha antes – ele se transforma em uma ferramenta de trabalho para muitas pessoas. Já o TikTok surge com outro perfil, inclusive geracional. Então, há essa complexificação de um campo que passa a se especializar na captura de certos segmentos do público. Antes, se pensarmos no Facebook, por exemplo, ele se parecia mais com uma esfera pública de massa – todo mundo estava lá, sobretudo antes de 2010. Agora, não: há uma especialização que, no caso das redes sociais contemporâneas, também potencializa essa captura.
FCW Cultura Científica – Como a antropologia interpreta essa transformação promovida pelas redes sociais?
Letícia Cesarino – A minha abordagem em antropologia digital foca bastante nas relações entre humanos e máquinas cibernéticas. Ela é um pouco diferente da adotada por muitos dos meus colegas. Boa parte deles realiza etnografias digitais, ou seja, aplicam os métodos convencionais da antropologia a espaços digitais. Eu, além disso, atuo no campo das humanidades digitais, que é um campo em que colaboramos, por exemplo, com cientistas de dados, para combinar a análise qualitativa do comportamento e discurso das pessoas nos ambientes digitais com métodos computacionais. Esses métodos permitem captar a agência agregada das pessoas e, quando possível – geralmente de forma indireta –, também a dos próprios algoritmos, que são os chamados agentes maquínicos. Ou seja, desse ponto de vista, um fenômeno digital como a desinformação, por exemplo, não é resultado apenas da agência humana, dos usuários, nem apenas da agência dos algoritmos. Trata-se de um fenômeno híbrido, que coemerge a partir da recursividade – ou seja, da causalidade circular – entre a agência dos usuários humanos e a dos algoritmos.
FCW Cultura Científica – Além de mudar a comunicação, os algoritmos e as novas tecnologias mudam o homem ou ainda é um exagero falar isso?
Letícia Cesarino – O humano é sempre uma potencialidade. O Homo sapiens é altamente dependente não apenas do meio social mas dos meios técnicos – essa é uma característica própria da nossa espécie. É o que chamamos de cultura. A própria evolução biológica do sapiens dependeu da cultura. Não é que houve primeiro a evolução biológica e, depois, surgiu a cultura. Não. No caso do sapiens, sempre foi um processo recursivo. Somos, portanto, extremamente dependentes de mídias – ou seja, de meios técnicos – para acessar o mundo real, a realidade. Temos essa característica que chamaria de construir mentes expandidas, ou, mais precisamente, mentes estendidas. No passado, isso ocorria por meio de outras formas de mediação: o texto escrito, por exemplo, ou, no caso de sociedades sem escrita, meios mitológicos ou xamânicos, que permitiam o acesso a outros planos de existência. Todos esses são modos de acessar realidades não imediatamente disponíveis ao nosso espaço fenomenológico.
Isso é algo positivo, porque nos permite ir mais longe, epistemologicamente falando, do que outros animais. Mas, ao mesmo tempo, nos coloca em uma posição de certa vulnerabilidade ou dependência em relação a esses meios. No caso das mídias digitais, por possuírem a capacidade operacional de construir realidades que existem apenas, ou primeiro, no ambiente online, esse processo se torna ainda mais complexo. Dependendo do grau de imersão e delegação – de memória, de tomada de decisão, de processamento de informação – que o usuário faz para esses ambientes digitais, ele pode acabar vivendo em uma realidade muito distinta da realidade offline. E diferentes usuários podem habitar realidades digitais extremamente distintas entre si.
Esse é, por exemplo, o sentido do título do meu livro O Mundo do Avesso, que trata de mundos digitalmente mediados que são tão diferentes entre si que, em casos extremos como o da radicalização ou das teorias da conspiração, um se torna o inverso do outro. Seria o caso-limite da diferença: aquele que é igual a mim, mas ao contrário. Essa necessidade de estender nossa mente a objetos técnicos e a outros agentes – outras pessoas – é própria da nossa espécie, porque somos profundamente sociais. E as redes sociais digitais combinam justamente essas duas dimensões: a agência técnica, exercida pelos algoritmos e pelas plataformas que nos apresentam conteúdos – ou seja, que nos mostram realidades – , e a agência humana. Afinal, não é apenas o usuário que vai atrás de informações na internet: os algoritmos também vêm atrás de nós, nos encontram, selecionam o que vemos.
Confiamos naquilo que é dito por certos agentes, algo que já ocorria no mundo offline. Mas, no mundo digital, surgem novos intermediários: os influenciadores, as “bolhas” construídas nesses ambientes virtuais. São territórios virtuais muito menos regulados do que os territórios do mundo pré-digital e acabamos delegando a esses novos intermediários parte dos nossos próprios processos mentais – inclusive processos fundamentais, como a produção da verdade, a percepção do mundo, o próprio acesso ao real.
FCW Cultura Científica – Como questionar essas verdades e realidades? Como duvidar daquilo que recebemos, por exemplo, em um grupo de WhatsApp? Aí estamos falando de desinformação, discurso de ódio, de tudo o que circula pela internet – essa construção de uma epistemologia alternativa. Como as pessoas podem fazer para tentar discernir o real do falso?
Letícia Cesarino – É sempre um processo de nadar contra a corrente, porque a própria infraestrutura desses espaços digitais é propensa à desinformação. Ela favorece, por exemplo, o viés de confirmação. Isso está ligado à forma como os algoritmos atuais são estruturados, porque eles operam com base na lógica da segmentação de públicos. Em termos cibernéticos, eu diria que esses sistemas operam com excesso de feedback positivo – ou seja, eles tendem a reforçar o comportamento e as preferências que o usuário já tem, e a agregá-los com usuários de comportamento similar ou adjacente. Já o feedback negativo, que seria aquilo que nos tira da zona de conforto e promove a convivência com a diferença, está muito menos presente nas atuais arquiteturas algorítmicas. No mundo analógico, estamos muito mais expostos a essa diversidade de contrapontos, a confrontos de opinião, tudo isso convivendo num mesmo mundo comum, em espaços públicos. Já os espaços digitais, não – eles são marcados por um viés homofílico, de reunir pessoas semelhantes, de reforçar comportamentos e visões pré-existentes, escalando isso até um ponto extremo de separar os mundos.
Então, o que seria o ideal? Seria construir arquiteturas digitais que valorizassem a contraposição, a diferença, e mesmo a aleatoriedade – um viés técnico diferente do que temos hoje. Mas, considerando que, por enquanto, não há no horizonte uma mudança estrutural nesse sentido, o que o usuário pode fazer é tentar variar ao máximo sua "dieta de notícias", por assim dizer. Ou seja, construir para si mesmo uma rede digital que seja o mais plural possível, que reproduza, na medida do possível, aquilo que é a nossa experiência no mundo offline – onde estamos o tempo todo em contato com o diferente, com pessoas que não necessariamente compartilham da nossa forma de pensar.
Eu diria também que é fundamental se informar sobre como essas ferramentas funcionam. Isso às vezes é tratado no campo do letramento digital, ou da educação midiática. Estar sempre desconfiando, refletindo: "Será que eu estou numa bolha? Será que estou sujeito a um viés excessivo?" E, a partir disso, tentar encontrar formas de variar e pluralizar os seus ambientes digitais. Em paralelo, ao nos conscientizarmos sobre como os algoritmos são programados para prender a nossa atenção ao máximo, podemos tentar equilibrar tempo de tela com outras atividades no offline, e evitar que a temporalidade hiperacelerada dos algoritmos dite nosso ritmo de vida.
FCW Cultura Científica – Entrando agora em um tema muito presente em suas pesquisas: por que e como as redes sociais têm contribuído para a ascensão de movimentos populistas? No Brasil e no mundo, o que elas oferecem de diferente para que esse uso tenha se tornado tão forte e tão poderoso?
Letícia Cesarino – É importante dizer que, neste caso, não se trata de qualquer tipo de populismo, porque há formas mais inclusivas e que não tensionam a democracia. Estamos falando de discursos populistas bem radicalizados que tendem à exclusão e à divisão da sociedade, pois esses movimentos nadam a favor da corrente nos ambientes digitais justamente porque esses ambientes são propensos à segmentação e à sua forma extrema, a bifurcação de mundos. Além da segmentação, eu destacaria a aceleração temporal. A aceleração temporal é um dos principais elementos – não só para explicar fenômenos políticos, mas também outros sintomas do nosso tempo, como a ansiedade, a adicção às telas, jogos e outros conteúdos digitais, a radicalização de jovens e até de crianças. Ela também incide diretamente sobre a política. Um ambiente social muito acelerado é, em geral, um ambiente em crise.
Antropologicamente falando, quando a nossa relação com o ambiente se torna instável, isso é percebido evolutivamente como um sinal de crise. E, assim como outros mamíferos, o ser humano, em uma conjuntura de crise (o termo antropológico é liminaridade), opera de maneira distinta do que em contextos de estabilidade ou paz. Uma das tendências é colocar o afeto do medo em primeiro plano – e isso é algo de que tanto populistas quanto teorias da conspiração se alimentam muito. Grande parte desses movimentos se baseia em produzir ambientes de ameaça existencial: o medo de que a corrupção vá destruir o país, o medo de que a "ideologia de gênero" corrompa as crianças, e por aí vai. Essa mobilização do medo está diretamente relacionada à aceleração do tempo social. Portanto, tanto o viés espacial – da segmentação homofílica – quanto o viés temporal – da hiperaceleração promovida pelos algoritmos – criam um estado mental coletivo do qual essas lideranças populistas se aproveitam.
Um terceiro elemento que eu incluiria é o que, na antropologia, chamamos de heteronomia, a delegação da nossa autonomia individual a outros agentes, ao ambiente. Falei antes da delegação de decisão, da delegação de memória, e isso é uma característica das sociedades em crise. As infraestruturas digitais são construídas de forma a estimular essa delegação: delegamos aos ecossistemas digitais decisões que antes eram nossas, e isso, indiretamente, pode se estender também a lideranças políticas e influenciadores.
Por isso, o termo seguidor é tão apropriado. Novamente como outros mamíferos sociais, o humano em estado liminar tende a se colocar em estado de multidão, ou seja, a suavizar suas diferenças individuais e entrar em um fluxo coletivo, de comportamento mimético, de cópia, de contágio, de ritualização – que é algo muito típico das redes sociais e dos ambientes digitais. Muitas vezes, esse comportamento de massa se organiza em torno de uma liderança do tipo populista, na qual os seguidores projetam uma legitimidade, ou até mesmo seus próprios egos. Lideranças como Bolsonaro, Trump, e outros representantes do populismo contemporâneo – especialmente da extrema direita – sabem explorar muito bem essa dinâmica para benefício político próprio. São como “antenas” que captam os ressentimentos, inseguranças e medos do senso comum. Para isso, eles contam hoje com o luxuoso suporte técnico das plataformas, ainda que essas empresas não as tenham projetado com esse propósito. Mas, sem dúvida, é um efeito não intencional dessa arquitetura cibernética.
FCW Cultura Científica – Poderia falar sobre seu projeto de pesquisa que analisou o uso político do Telegram?
Letícia Cesarino – É um projeto com uma abordagem inovadora de métodos mistos. Trabalhamos com um componente qualitativo – de interpretação e contextualização sócio-antropológica – e outro componente computacional, voltado à análise de grandes volumes de dados do Telegram. O Telegram é um aplicativo com API aberta, o que o torna um dos poucos em que conseguimos coletar dados em tempo real e em larga escala sem grandes obstáculos. E é isso que temos feito desde a pandemia.
Um dos aspectos mais interessantes desse tipo de pesquisa é que ela permite acessar o comportamento agregado do sistema. Foi isso que buscamos fazer, por exemplo, ao analisar os públicos que apoiavam o ex-presidente Jair Bolsonaro – especialmente os mais radicalizados que estavam no Telegram – e a relação desses grupos com públicos mais convencionais, ligados à imprensa tradicional ou à internet mais "de superfície". A partir disso, produzimos um argumento com base cibernética, mostrando como esses públicos co-emergem recursivamente de forma “invertida”, e como lideranças como Bolsonaro operam uma espécie de regulação entre eles, através de ciclos cibernéticos de avanço e recuo. Eles vão cruzando os limites normativos – como Trump está fazendo agora –, forçam as fronteiras do possível, observam o feedback imediato, e muitas vezes recuam, para avançar de novo depois. Esses ciclos regulares de avanços e recuos é algo que conseguimos detectar de forma clara nos dados agregados, pois é um comportamento do ecossistema como um todo, e não das suas partes individuais apenas.
Isso explica também a forma como está se dando a atual crise de legitimidade da democracia. Não é necessariamente uma ruptura direta, mas sim um processo de erosão contínua – um ciclo cibernético de tensionamento constante, em que se testam os limites do que é pensável ou aceitável dentro de um regime democrático, empurrando-os pouco a pouco até um limiar de irreversibilidade em que ele possa ser “virado do avesso” e enfim transformar-se no seu contrário: uma autocracia.
Além disso, há um conflito estrutural entre as plataformas digitais e a própria arquitetura da democracia. São formas muito diferentes de mediação. As mediações das plataformas são desenhadas com base em lógicas que não têm relação alguma com os princípios democráticos –elas seguem modelos de negócio, a lógica da economia da atenção. Já a democracia se estrutura a partir de princípios como o diálogo entre diferentes, a construção de um mundo comum e plural. Só que os ambientes digitais, especialmente as redes sociais, tendem a fazer o oposto: eles separam os diferentes e aproximam os iguais, e essa não é uma estrutura saudável para a democracia. Além disso, as plataformas vêm colocando alternativas totais às formas tradicionais de representatividade democrática, de planejamento urbano, de educação, das relações de trabalho, da gestão da saúde individual e coletiva – e até mesmo do sistema bancário, através das criptomoedas. São espaços de soberania paralela controlados por empresas que nem no Brasil estão.
FCW Cultura Científica – Essas plataformas estão se tornando instrumentos ideológicos? Elas estão se especializando ideologicamente?
Letícia Cesarino – Essa é, de fato, uma tendência recente e bastante interessante. Antes, víamos diferentes posições políticas coexistindo dentro de uma mesma plataforma – como era o caso do Twitter, antes de se tornar o X. Mais recentemente, o que a gente começa a ver é uma especialização política entre plataformas diferentes, algo novo. A compra do Twitter pelo Elon Musk deixou isso muito claro. Essa nova fase marca também outra tendência recente: a de CEOs e fundadores dessas empresas assumirem publicamente posições políticas – o que não era tão comum antes.
Essa segmentação política das próprias plataformas se soma a outras segmentações que já vínhamos observando: por faixa etária, por tipo de uso, por estilo de linguagem. Mas a segmentação política traz implicações muito mais profundas, especialmente em relação à questão da regulação. Quando os donos dessas empresas passam a se posicionar, por exemplo, contra o Supremo Tribunal Federal, ou contra instituições democráticas nos seus países, a pergunta que fica é: como regular isso? Se já era difícil antes, agora se torna ainda mais complicado. Por isso, defendo que a regulação, sozinha, não é mais suficiente. Precisamos debater com mais seriedade questões de soberania digital e solidariedade digital entre países democráticos. Precisamos buscar mais autonomia em relação às nossas infraestruturas digitais – e não ficar dependentes de empresas estrangeiras que, muitas vezes, nem estão sujeitas às nossas leis e não aceitam ser propriamente reguladas.
Essa ideia já tem sido ventilada fora do Brasil onde, inclusive, já existem modelos mais avançados de regulação. Acredito que seria muito mais produtivo se pudéssemos articular um esforço internacional, uma aliança entre nações democráticas – Canadá, México, Europa – que queiram preservar certos princípios: soberania sobre as próprias infraestruturas, mas também a promoção de ambientes digitais baseados em valores democráticos. Isso não precisa significar que tudo tenha que ser estatal. Podemos pensar em modelos híbridos, público-privados, com empresas nacionais ou regionais que compartilhem certos parâmetros básicos – como o compromisso com o debate democrático, a transparência, a prestação de contas e o interesse público – em vez de visar apenas o lucro a qualquer custo, que é a lógica dominante nas plataformas atuais.
FCW Cultura Científica – Mas, para a criação de plataformas alternativas, existe a questão tecnológica. Acabamos sempre dependendo de tecnologias que, hoje em dia, estão basicamente concentradas nos Estados Unidos e na China. Como os países em desenvolvimento podem lidar com isso?
Letícia Cesarino – É justamente por isso que tenho insistido tanto na ideia de solidariedade digital em nível internacional. Infelizmente, chegamos a um ponto em que é muito difícil – quase impossível – competir, individualmente, com essas grandes empresas. A China, por exemplo, e até certo ponto a Rússia, se blindaram desde o início. Elas não permitiram a entrada irrestrita das plataformas do Vale do Silício ou impuseram fortes controles e limitações. O resto do mundo não fez isso. As plataformas foram entrando, ganhando espaço, e hoje se tornaram infraestruturas incontornáveis, das quais é muito difícil abrir mão.
Então, para conseguir competir em algum nível, é indispensável um esforço coordenado – que envolva investimento público nacional, universidades, empresas locais, mas também, e principalmente, cooperação internacional. É preciso que os países se fortaleçam mutuamente, trocando experiências, recursos, conhecimento técnico e visões estratégicas. É a única forma viável que eu vejo hoje. Não adianta cada país tentar resolver isso de forma isolada. Por isso, fico feliz que esse debate esteja finalmente ganhando força, sendo colocado em termos mais claros e, esperamos, concretos.