
Entrevista
Luis Felipe Miguel
Professor da UnB critica o modelo das redes sociais, que priorizam o lucro por meio da atenção dos usuários, e relata sua decisão de abandoná-las, buscando um espaço mais saudável para textos e reflexões. Alerta para os riscos das redes à democracia, à medida que substituem o debate argumentativo por reações imediatistas e polarizadas, e lamenta a substituição do pensamento crítico por influenciadores que encenam autenticidade para engajar o público

Sobre
Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq.
Publicou os livros “Marxismo e política” (Boitempo, 2024), “Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil” (Autêntica, 2022), “Dominação e resistência” (Boitempo, 2018), “Consenso e conflito na democracia contemporânea” (Editora Unesp, 2017) e “Democracia e representação: territórios em disputa” (Editora Unesp, 2014).
A partir de meados da década de 2010, tornou-se ativo participante do debate público no Brasil, por meio de artigos publicados em sites e nas redes sociais Facebook e Instagram – onde chegou a ter mais de 23 mil seguidores. Recentemente, decidiu abandonar as redes sociais, publicando seus textos de opinião na plataforma Substack, no espaço “Amanhã não existe ainda”.
FCW Cultura Científica – Professor Luis Felipe, como foi a sua experiência de uso das redes sociais como plataforma de difusão de ideias e de debate? E como isso mudou com o tempo?
Luis Felipe Miguel – Eu tinha uma conta no Facebook que só criei e não utilizava, mas, em 2015, quando o meu grupo de pesquisa na Universidade de Brasília começou a atuar nessa rede, passei a usá-la para administrar a página do grupo. Naquela época, as páginas acadêmicas ainda conseguiam bom alcance, e tivemos postagens que chegaram a mais de 5 mil visualizações. Era um momento de crise política, com a campanha pela deposição da presidenta Dilma Rousseff e, depois, o golpe de 2016. Comecei a publicar opiniões ali – no início, quase como um desabafo.
Algumas pessoas mais ativas nas redes republicavam meus textos, o que ampliou minha presença e me permitiu ser lido por muita gente. Quando escrevemos um artigo acadêmico, entre a redação e a publicação, passa tanto tempo que o debate já mudou. E, mesmo quando é publicado, se for lido por 200 pessoas, consideramos um sucesso. Nas redes, eu escrevia no calor do momento, e rapidamente aquilo era lido por milhares. Além disso, alguns sites passaram a republicar o que eu escrevia, o que também ampliava o debate.
Depois, quando houve a mudança no algoritmo no Facebook, as visualizações despencaram por causa da priorização dos posts pagos. Foi aí que comecei a experimentar o Instagram. Eu já tinha uma conta, que usava apenas para acompanhar alguns perfis por causa de uma pesquisa que orientava. Como não era um formato textual – e o meu negócio é escrever, não fazer vídeo –, eu ainda não publicava, mas fui me adaptando. Comecei a usar programas gráficos para montar posts e procurei continuar participando dos debates públicos. Só que percebi que essa ideia de "participar do debate" era, em grande medida, ilusória. Primeiro, porque falamos apenas para bolhas muito fechadas. Tenho uma posição à esquerda e estava falando só com pessoas de esquerda – ou seja, pregando para convertidos. E, mesmo dentro dessa bolha, é muito difícil expressar divergências.
A estrutura dessas redes – estudei isso, inclusive, em um projeto de pesquisa sobre o novo ambiente do debate político – favorece um espírito tribal. As pessoas sentem a necessidade de afirmar uma comunhão absoluta com seu grupo de referência. Qualquer dissensão é vista como traição. Então, se você faz uma crítica a algo que é considerado consenso naquele grupo, sua crítica não provoca reflexão ou debate: ela provoca reações agressivas, ou o chamado cancelamento. É um ambiente pouco propício à troca argumentativa.
FCW Cultura Científica – Por que decidiu abandonar as redes sociais?
Luis Felipe Miguel – É algo que amadureci com o tempo, refletindo sobre os efeitos negativos das plataformas na sociabilidade humana, nas relações interpessoais, no debate político, nas relações de trabalho e na saúde mental. Temos a ilusão de que estamos resistindo, mas, na verdade, estamos alimentando essa máquina. A reflexão sobre o impacto social de estar nas plataformas se somou à reflexão sobre o meu impacto pessoal — isto é, o quanto eu me irritava, o quanto do meu tempo era gasto com informações absolutamente inúteis, porque ninguém é imune a isso. As iscas das redes sociais para captar atenção são baseadas em estudos de psicologia que podemos tentar controlar, mas aos quais não somos imunes. É um desperdício de tempo, e somos puxados para participar de discussões absolutamente inúteis. Porque há pessoas que lucram com isso, que monetizam as tretas, que têm canais no YouTube que ganham dinheiro exibindo brigas absolutamente desnecessárias. Eu só ganhava irritação. Faz alguns meses que deixei as redes sociais e, desde então, minha qualidade de vida melhorou muito. Estou mais focado, produtivo e desfrutando melhor dos meus períodos de lazer.
FCW Cultura Científica – Como foi substituir as redes sociais por um outro tipo de plataforma para publicar seus textos?
Luis Felipe Miguel – O espaço que abri no Substack se chama “Amanhã não existe ainda”, que é um verso do poeta recifense Miró da Muribeca. É uma alternativa que encontrei para permanecer no debate público. Mudei do Facebook e do Instagram para o Substack em busca de um ambiente virtual mais saudável, sem anúncios e onde o algoritmo não fosse soberano, em que eu não fosse a matéria-prima para a mineração e comercialização de dados — e em que os textos, enfim, fossem o mais importante.
As redes sociais têm arquiteturas diferentes, maneiras de interação diferentes e levam a conteúdos diferentes, mas o propósito de manter as pessoas presas é comum a todas elas, seja Facebook, TikTok, Instagram ou Twitter – que ainda não acostumei a chamar de X. A premissa de todas elas é, uma vez que a pessoa entrou ali, aquilo deve se tornar um universo fechado e evitar que a pessoa saia. Diferentemente do Substack, as redes sociais não permitem incluir nas postagens links para sites ou prejudicam quem inclui. A ideia é controlar as pessoas nesses ambientes, o que é complicado se pensarmos que ali ocorre atualmente boa parte do debate público, mas são ambientes controlados por empresas privadas, que impõe suas próprias regras. São empresas que têm um impacto gigantesco na vida das pessoas, no funcionamento da política, da democracia, e que agem pensando exclusivamente em lucro. Todas têm esse objetivo, manter as pessoas presas a elas para lucrarem a partir daí, seja extraindo dados, seja apresentando publicidade, elas usam as mesmas iscas. Mas o Substack tem vários problemas também, inclusive uma tendência de se “facebookizar”, o que é lamentável, inclusive com a inclusão dos likes.
FCW Cultura Científica – Em um texto publicado em seu novo espaço, você comenta que algo que o incomoda bastante é o recurso das curtidas, os chamados likes. Por quê?
Luis Felipe Miguel – Sim. Como escrevi, se eu fosse dado a declarações retumbantes, diria que o surgimento do like marca a decadência da civilização. Ele é, em certo sentido, uma arma de destruição em massa das interações humanas. O like permite manter relações pessoais sem, de fato, personalizá-las. Por exemplo, se um amigo tem filhos ou uma amiga viaja, em vez de conversar com eles, saber como estão, compartilhar suas experiências, limitamo-nos a dar um like nas postagens. E com isso sentimos que cumprimos o “ritual” de manter a relação. São laços de baixa manutenção, como se interagir de forma mais profunda fosse um grande suplício. O like simboliza exatamente isso: trocamos interações reais, ricas e imprevisíveis por respostas padronizadas, pré-formatadas pelas plataformas
FCW Cultura Científica – E o Substack introduziu o like.
Luis Felipe Miguel – O que era o Substack originalmente? Era uma ideia que remete aos antigos blogs, onde as pessoas escreviam textos mais longos e detalhados, e esses textos podiam ser enviados por e-mail para seus assinantes. O Substack ainda é um espaço que se preocupa em produzir conteúdo mais aprofundado, com maior argumentação e reflexão. Mas, à medida que ganhou popularidade, especialmente nos Estados Unidos, ele se aproximou dos modelos das redes sociais. O Substack afirma que não coleta dados nem vende informações sobre o comportamento dos usuários, o que é, para mim, um ponto positivo. Mas ao introduzir o like, abrir espaço para notas, permitir textos menores no estilo do antigo Facebook, e incluir vídeos e lives, fico preocupado. O meu receio é que, com tudo isso, ele acabe se tornando mais uma rede social, algo parecido com as plataformas que decidi abandonar.
Eu não migrei para o Substack com a ideia de que seria uma plataforma progressista ou gerida por "capitalistas bonzinhos". Eu vi nela uma oportunidade de ter um espaço menos tóxico para publicar o que escrevo, um ambiente com maior liberdade para argumentar de maneira mais ampla. Mas é difícil. Um exemplo, recentemente publiquei um texto criticando a ida do Lula à Rússia, para participar, ao lado de Vladimir Putin, das comemorações da vitória da ex-União Soviética na Segunda Guerra Mundial, especialmente por causa da invasão da Ucrânia. Anunciei essa publicação no Instagram – que é o que tenho feito agora, anunciar meus textos em outras redes – e recebi uma enxurrada de comentários do tipo: “Por que você não vira comentarista da Globo News?” ou “Achei que era um texto do Alexandre Garcia”. São comentários de pessoas que não aceitam críticas ao Lula ou ao Putin, porque o Putin é visto por alguns como o opositor dos Estados Unidos, que, na visão deles, é o "mal".
O problema é esse: não há troca de argumentos. Os seguidores se sentem traídos quando alguém que supostamente está do lado deles discorda, mesmo que seja em pontos específicos. O ambiente se torna muito alarido e com pouco debate. E isso não ocorre por acaso. Pesquisas mostram que esse tipo de interação – grupos se atacando, se polarizando – aumenta o engajamento, faz com que as pessoas passem mais tempo nas redes. E, no final das contas, esse é o grande objetivo dessas plataformas: manter você preso nelas o maior tempo possível. Porque é assim que elas coletam seus dados e geram receita com publicidade, o que é a principal fonte de lucro e influência dessas empresas.
FCW Cultura Científica – Quando as redes sociais surgiram, elas foram vistas como potenciais instrumentos democráticos, usados por movimentos como a Primavera Árabe e o Black Lives Matter. Nos últimos anos, o cenário mudou, e as redes passaram a ser utilizadas pela extrema-direita e por populistas em todo o mundo. As redes sociais deixaram de ser ferramentas da democracia e se tornaram um risco para as estruturas democráticas?
Luis Felipe Miguel – Não tenho dúvida de que as redes sociais representam uma ameaça à democracia. No início da popularização da internet, no final do século passado, ela foi vista como uma ferramenta poderosa para a democracia. Movimentos em prol da liberdade, da mobilização de grupos e da democratização da informação se beneficiaram dessa nova tecnologia, justamente porque a internet permitia o acesso a dados, a confrontação das narrativas dominantes e o fortalecimento de vozes antes silenciadas. Tudo isso parecia extremamente positivo.
As redes sociais, com seus algoritmos e com o treinamento das máquinas para entender e direcionar o comportamento dos usuários, transformaram a dinâmica. Elas nos insulam em comunidades restritas, onde as verdades são incontestáveis. Dentro desses grupos, há pouca ou nenhuma interação com o contraditório. O pertencimento ao grupo vem com uma forte pressão para aceitar dogmas compartilhados. Para as plataformas, isso se tornou um modelo extremamente lucrativo, e elas defendem esse sistema com unhas e dentes.
Esse tipo de ambiente, que evita o confronto com outras narrativas, permite que ideias absurdas ganhem o status de "verdade absoluta" dentro desses nichos. O que a literatura chama de fake news surge aí. Nas redes sociais, qualquer discurso, sem o devido embasamento, pode ser tratado como verdade, independentemente da sua qualidade ou veracidade. O jornalismo profissional, a ciência, a escola — essas instituições perderam sua autoridade, e hoje tudo virou apenas opinião.
E é aí que entra um problema importante, que parece ser uma das exigências do espírito do tempo: a possibilidade de que as pessoas saiam rapidamente dando a sua opinião sobre tudo. Não é que elas compartilham opiniões fundamentadas — o que seria saudável — mas sim, simplesmente, reagem com "gostei" ou "não gostei" a tudo o que acontece no mundo. E sinceramente, eu não estou interessado em saber o que cada pessoa pensa sobre tudo. Quando perdemos a autoridade de quem tem conhecimento especializado – não de uma autoridade absoluta, mas de quem possui uma expertise reconhecida pela sociedade, como cientistas, educadores ou jornalistas – isso cria um vazio.
FCW Cultura Científica – As redes sociais deveriam ser reguladas?
Luis Felipe Miguel – Essas plataformas se opõem frontalmente a qualquer tipo de regulação. Não é só uma questão política – embora isso também seja importante –, porque, sem uma base mínima de regulação, sem conseguir estabelecer o que são fatos e o que são fake news, o debate democrático simplesmente não pode existir. Mas o problema não se limita à política. As plataformas também são contra a regulação da publicidade. Elas aceitam o charlatanismo de modo absolutamente evidente, lucram com as apostas ilegais e com formas que promovem o vício nas pessoas. Elas aceitam problemas como a promoção dos distúrbios de autoimagem entre os adolescentes, que se tornou uma epidemia mundial em grande medida por causa dos incentivos dados pelo ambiente das plataformas.
Vimos isso no Brasil em 2020, com o projeto de lei conhecido como PL das fake news. Seria um começo, uma reação ainda muito tímida, mas as empresas donas das plataformas se aliaram com a extrema-direita no Congresso e fizeram uma campanha baseada em fake news para impedir alguma política de restrição às fake news. Isso é muito problemático do ponto de vista da sociedade. O livro A Máquina do Caos traz relatos de massacres em diversos países, que ocorreram devido a conflitos étnicos anteriores, mas que foram amplamente alimentados por desinformação nas plataformas. As empresas donas das redes sabiam disso, mas nada fizeram, sempre usando o discurso abstrato de “liberdade de expressão”, como se a liberdade de expressão incluísse o direito de manipular, mentir e incitar violência.
Lembro de quando o Pierre Lévy falava sobre a sociedade do conhecimento e a inteligência coletiva que surgiria com a internet, as inúmeras possibilidades que ela poderia trazer. Mas a tecnologia é muito amorfa. Ela depende do uso que será dado a ela, e quem conseguiu impor esse uso foram as grandes corporações, que não estavam interessadas em promover o avanço da inteligência coletiva ou o debate democrático, mas sim em aumentar seus lucros — o que, aliás, conseguiram fazer com grande êxito.
Também lembro dos anos 1990, quando Bill Gates publicou o livro A Estrada do Futuro. Naquele momento, a internet estava apenas começando, e muitos intelectuais falavam sobre a criação de uma grande ágora virtual, um espaço de debate ampliado. Mas o foco de Gates estava em algo bem diferente: ele queria transformar a internet em um grande mercado. O desafio, para ele, era fazer com que as pessoas se sentissem seguras para colocar seus números de cartão de crédito e comprar online. A prioridade da indústria naquela época era essa, e foi exatamente o que aconteceu – a internet se tornou um grande mercado. Não um grande espaço de debate, como muitos imaginavam, mas um território voltado para o comércio.
A internet, assim como muitas outras tecnologias, é um espaço de grandes ilusões frustradas. Bertolt Brecht, com sua teoria do rádio, dizia que o rádio seria a grande ferramenta para democratizar o debate público, onde qualquer pessoa poderia ter uma estação e transmitir suas ideias. Ele manifestou com o rádio a mesma utopia que muitos foram manifestar depois com a internet. Nos dois casos, existia o potencial tecnológico para essa utopia se realizar, mas, na prática, o desenvolvimento dessas tecnologias foi direcionado para outros fins.
FCW Cultura Científica – Por que as redes sociais se tornaram plataformas tão populares para fazer política ou falar sobre política, ao mesmo tempo em que o debate democrático e a reflexão crítica parecem perder espaço?
Luis Felipe Miguel – Há uma confluência entre esses dois pontos. Quando comecei a estudar mídia e política, ainda no tempo da televisão, já se falava sobre o impacto da personalização dos embates políticos. A televisão criava uma sensação de intimidade: o político aparecia na sala da sua casa, falando como se estivesse frente a frente com o telespectador. Isso levava o público a avaliar mais a simpatia do candidato – o tipo com quem você tomaria uma cerveja – do que suas propostas ou sua competência política. Essa lógica, que já era problemática, se agravou com as redes sociais.
As redes sociais potencializam as chamadas relações parassociais, ou seja, esse sentimento de proximidade com pessoas públicas que, na realidade, não conhecem quem as segue. Isso acontece com celebridades em geral, mas também com políticos. O público se sente mais próximo, participa, comenta, recebe respostas (mesmo que automatizadas ou feitas por assessores). E os políticos, por sua vez, exibem fragmentos calculados da sua intimidade. Mostrar o café da manhã, fazer uma live durante uma atividade cotidiana, adotar uma estética "suja" – ou seja, deliberadamente improvisada, com baixa produção – tornou-se regra.
Essa encenação de espontaneidade é hoje um recurso fundamental para o sucesso político. O discurso estrategicamente pensado continua existindo, mas precisa parecer natural, casual. Um bom exemplo é o prefeito do Recife, João Campos, que não é de extrema-direita, mas se tornou mais conhecido nacionalmente quando, durante o Carnaval, descoloriu o cabelo, ganhando imediatamente milhares de seguidores nas redes sociais. Claro que aquilo não foi espontâneo: por trás havia uma equipe de marketing digital, provavelmente munida de grupos focais e análises prévias, prevendo a boa repercussão da ação. Ou seja, a intencionalidade política permanece, mas é disfarçada de autenticidade. Quem tenta ser realmente espontâneo — como Ciro Gomes, por exemplo — muitas vezes se prejudica. Hoje, o sucesso político depende da habilidade de fingir espontaneidade.
O problema é que, com isso, o público passa a esperar que os políticos entrem nas trends, comentem filmes e músicas do momento, publiquem memes, provoquem adversários — e não necessariamente que apresentem propostas concretas para os grandes dilemas da sociedade. A atenção ao conteúdo político de fato se torna residual. Isso vale tanto para a esquerda quanto para a direita, mas a direita leva vantagem. Em geral, o discurso conservador reforça estereótipos já presentes no senso comum, o que facilita sua difusão. Já um discurso que busca questionar e desconstruir esse senso comum exige mais tempo, mais concentração e maior disposição para escutar argumentos — algo cada vez mais raro nas redes.
FCW Cultura Científica – O político se transformou em influencer. O que acontece quando influencers substituem filósofos, sociólogos, cientistas, professores, jornalistas? O que perdemos em termos de reflexão, profundidade, imaginação crítica?
Luis Felipe Miguel – Se eu tivesse que dar uma resposta curta, seria: não sei. Porque, de fato, é uma questão muito complicada. Estamos diante de um fenômeno que vem de todos os lados. Tivemos um processo significativo de democratização do acesso ao ensino superior no Brasil nos últimos anos, algo realmente importante e louvável. Mas o ingresso na universidade exige mais do que apenas acesso: é preciso aprender as ferramentas básicas da disciplina intelectual. Produzir e adquirir conhecimento exige esforço, tempo e concentração. No entanto, o que vemos, especialmente com a lógica das redes sociais, é que esse investimento não vale a pena.
Muitos acham que podem substituir a leitura de um texto de referência por um vídeo no YouTube assistido enquanto lavam a louça ou estão no trânsito. Vemos militâncias, muitas vezes ligadas a causas justas, alimentadas apenas por memes e slogans. Eles podem servir para chamar atenção para um tema, mas não dão conta da complexidade do mundo real. Quando você afirma que esse esforço intelectual é necessário, rapidamente vem a acusação de elitismo. Mas o objetivo da democratização do ensino superior é justamente possibilitar que pessoas que não têm esses referenciais de berço possam adquiri-los.
Além disso, há uma confusão crescente entre o papel do cientista e o do divulgador científico. A divulgação é essencial – sobretudo diante do avanço do negacionismo –, mas são papéis distintos. Um cientista pode ser brilhante e não ter nenhuma habilidade para divulgar ciência, e isso não o desqualifica. O problema é que hoje, com agências de fomento exigindo presença nas redes sociais como critério de avaliação, corremos o risco de valorizar mais quem tem habilidade de se comunicar online do que quem produz conhecimento relevante. Por outro lado, há excelentes divulgadores que não são cientistas, e tudo bem, desde que não se confunda isso. Mas o que tem predominado é uma vulgarização de baixa qualidade.
A boa divulgação científica exige cuidado. Você não pode pegar algo como física quântica e reduzi-la a um vídeo de TikTok e achar que está ensinando alguma coisa. Está apenas criando a ilusão de conhecimento. Mesmo o público da divulgação precisa estar disposto a fazer um esforço intelectual mínimo para compreender o conteúdo. No caso das ciências sociais, isso também é complicado, porque os conflitos de interesse estão muito mais presentes de forma direta.
Há ainda uma confusão entre divulgação científica e o papel dos doutrinadores – termo que acho horrível pelo uso que a direita faz dele, mas que descreve bem o que acontece. A ciência não é neutra. Eu, por exemplo, faço ciência social, que inevitavelmente toma posição. Mas entendo que meu papel como cientista é diferente do de um militante ou de uma liderança partidária. Tenho que estar aberto ao contraditório, disposto a entender o mundo de forma não dogmática. E, infelizmente, vemos muita gente, inclusive com grande potencial, confundindo esses papéis.
Diante disso, a primeira coisa que precisamos fazer é resistir. Pode parecer antipático, mas é necessário garantir padrões mínimos. As políticas de inclusão não podem significar o rebaixamento desses padrões, senão estaremos apenas mascarando a exclusão com outra roupagem. Também precisamos ocupar os espaços possíveis com divulgação científica de qualidade – e, felizmente, há bons exemplos disso em coletivos e projetos independentes.
Mas, francamente, não tenho nenhuma fórmula para resolver esse impasse. E, para ser sincero, também não tenho muito otimismo no curto prazo. Estamos em um momento extremamente desafiador. Se há 20 anos alguém me dissesse que chegaríamos a esse ponto, eu acharia que era um delírio. Estamos vivendo uma era em que a ignorância virou mérito. Basta olhar para lideranças em todo mundo, que fazem questão de ostentar a própria incompetência, como se isso os tornasse mais autênticos. Isso é assustador. O problema não é só que ideias absurdas estejam circulando, mas que essas ideias estão orientando decisões de quem tem poder. Não sei como enfrentaremos isso, mas sei que será preciso muito mais do que memes e likes para reconstruir o pensamento crítico.