
Ana Julia Bernardi
Diretora de Projetos do Instituto Democracia em Xeque aponta que a desinformação é persistente, acelerada por plataformas pouco reguladas e, agora, pela inteligência artificial. Bernardi também alerta para a “terceira onda de autocratização”, marcada pela disseminação global de discursos autoritários e estratégias de pânico moral. Para enfrentar esse cenário, ela defende regulação das plataformas, cooperação entre instituições e educação política e midiática como instrumentos essenciais para reconstruir um ambiente digital democrático

Sobre
Ana Julia Bonzanini Bernardi é diretora de Projetos do Instituto Democracia em Xeque. É professora visitante na Pós-Graduação de Ciência Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e professora na Graduação em Gestão Pública da Escola de Ensino Superior da Fundação Instituto de Pesquisa Econômica. É pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em América Latina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.
Fez o doutorado e mestrado em Ciência Política pela UFRGS e o bacharelado em Relações Internacionais (ESPM) e em Políticas Públicas (UFRGS), com pós-graduação em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas (UFRGS).
É autora do livro “Fake News e as Eleições de 2018: Como Combater a Desinformação” (2020). Atua como pesquisadora e consultora em temáticas relacionadas à educação política, políticas públicas, educação midiática, combate à desinformação, projetos sociais e juventude(s).
FCW Cultura Científica – O Democracia em Xeque nasceu como projeto e hoje é um instituto consolidado. Como foi esse percurso e qual é o foco central da atuação?
Ana Julia Bernardi – O Democracia em Xeque (DX) foi criado em fevereiro de 2021, inicialmente como um projeto vinculado à Fundação Tide Setúbal. A motivação veio com a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, ocorrida em janeiro daquele ano, quando começamos a considerar que algo semelhante poderia acontecer no Brasil. A partir daí, reunimos pesquisadores de várias áreas – ciência política, comunicação, sociologia, tecnologia – para monitorar redes sociais e acompanhar o debate político digital em torno de temáticas relacionadas à questão das urnas, direitos humanos, discurso de ódio e campanhas de desinformação que ameaçavam a integridade eleitoral e o sistema democrático.
No fim de 2023, após os ataques de 8 de janeiro em Brasília, entendemos que era hora de dar um passo institucional. Então, transformamos o Instituto Democracia em Xeque em um Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) independente, apartidário e de alcance nacional. Nosso objetivo é produzir conhecimento aplicado para fortalecer o Estado Democrático de Direito, enfrentando a desinformação, o discurso de ódio e o extremismo político violento.
O instituto trabalha com uma metodologia triangular – que envolve mineração de dados, análise de narrativas e escuta social. Essa combinação permite cruzar análises qualitativas e quantitativas e entender como as narrativas nocivas se formam e circulam. Nosso horizonte é construir um ambiente cívico digital inclusivo e verdadeiramente democrático.
Um exemplo. Um dos nossos diretores, Marcelo Alves, está à frente do projeto Memorial do 8 de Janeiro, que reúne informações que haviam sido deletadas pelas Big Techs, mostrando o que levou aos ataques de 8 de janeiro e como ocorreu o processo de radicalização online. Também criamos no site do DX uma linha do tempo que reconstrói esses eventos. A partir desse trabalho, entendemos que seria necessário fundar o instituto para continuar monitorando esse ecossistema. Sabíamos que esse ecossistema se reinventaria e permaneceria ativo, exigindo acompanhamento constante.
FCW Cultura Científica – O instituto propõe o conceito de “Tripé Negacionista”. O que ele significa?
Ana Julia Bernardi – Chamamos de Tripé Negacionista o conjunto de narrativas coordenadas de desinformação que afetam três dimensões fundamentais: democrática/eleitoral, climática/ambiental e sanitária/vacinal. Esses três eixos formam a base sobre a qual se estruturam campanhas de desinformação de grande alcance.
Durante as eleições, vimos a manipulação de fatos para questionar a legitimidade do sistema eleitoral. Na pandemia, o negacionismo científico custou vidas. E hoje, na pauta ambiental, há uma guerra de narrativas em torno da crise climática e da Amazônia. Nosso papel é identificar, analisar e comunicar essas distorções, subsidiando imprensa, sociedade civil e instituições públicas com informações verificadas e contextualizadas.
FCW Cultura Científica – Essa permanência da desinformação tem sido uma das grandes preocupações do debate público. Por que ela é tão difícil de conter?
Ana Julia Bernardi – Porque a desinformação se espalha muito mais rapidamente do que a informação verdadeira. Há vários estudos que comprovam isso. Mesmo quando há correção, nem sempre conseguimos reverter o dano causado. É algo muito sério. Por isso, tanto no DX quanto na minha atuação como pesquisadora, defendo a necessidade de regulação das redes sociais, além da regulação da inteligência artificial. Estamos prevendo grandes desafios nas próximas eleições.
Nas eleições municipais passadas, a inteligência artificial foi usada mais como ferramenta de humor, em memes, e menos para desinformação – embora isso já ocorresse em alguma medida. Agora, com o avanço tecnológico, ela está sendo amplamente usada e tende a ser explorada de forma muito mais intensa e estratégica.
FCW Cultura Científica – A desinformação também se alimenta do desconhecimento político?
Ana Julia Bernardi – Sem dúvida. Por exemplo, eu dou aula de Gestão Pública para alunos do primeiro ou segundo semestre e muitos deles não têm a menor ideia de como funciona a Câmara Municipal. Isso mostra o distanciamento entre a população e as instituições democráticas. Esse problema se agravou não só após o bolsonarismo, mas também depois da eleição de Trump. A partir dali, as plataformas digitais afrouxaram seus processos de regulação, e isso se refletiu no mundo inteiro — inclusive no Brasil.
FCW Cultura Científica – O DX tem colaborado com a imprensa e com órgãos como o TSE e o STF. Como funciona essa relação?
Ana Julia Bernardi – Desde o início, mantemos uma atuação colaborativa. Produzimos relatórios e análises semanais sobre o comportamento das redes, que são enviados a veículos de imprensa e instituições públicas. Durante o processo eleitoral de 2022, colaboramos com o programa de enfrentamento à desinformação do TSE, ajudando a identificar tendências e fluxos de desinformação. Essa parceria reforça a importância de um ecossistema articulado de defesa da integridade da informação, no qual universidades, sociedade civil e instituições públicas trabalham juntas.
FCW Cultura Científica – O que mudou no ambiente digital desde então?
Ana Julia Bernardi – Mudou muita coisa, e nem sempre para melhor. Com o fechamento de ferramentas como o CrowdTangle e o aumento das restrições de acesso às APIs das plataformas, o monitoramento se tornou mais difícil. Além disso, as próprias plataformas reduziram a moderação de conteúdo, permitindo a disseminação de discurso de ódio, teorias conspiratórias e até aliciamento infantil. O X (antigo Twitter) é um caso emblemático disso.
Com a popularização da inteligência artificial, a manipulação se sofisticou. Imagens e áudios falsos ganham aparência real e se espalham rapidamente, criando uma crise enorme. Vivemos uma nova fase da pós-verdade, em que muitos acreditam apenas no que confirma suas crenças.
FCW Cultura Científica – Diante desse cenário, como equilibrar regulação e liberdade de expressão?
Ana Julia Bernardi – Regulação não é censura. É garantir que as plataformas sejam responsabilizadas pelos efeitos de seus sistemas algorítmicos. As Big Techs hoje são mais poderosas que muitos Estados nacionais e controlam a forma como as pessoas se informam. Sem regulação, a imprensa é forçada a competir com a desinformação dentro da lógica das redes, e o debate público se degrada. Educação midiática e política são essenciais, mas seus efeitos são de longo prazo. A regulação, por sua vez, é uma medida imediata de proteção democrática.
FCW Cultura Científica – Essa preocupação aparece também em suas pesquisas, especialmente sobre o avanço do autoritarismo. Como você interpreta a atual “terceira onda de autocratização”?
Ana Julia Bernardi – Diversos relatórios internacionais – da Freedom House e V-Dem, por exemplo – mostram que vivemos um retrocesso democrático global. Mesmo democracias consolidadas vêm experimentando o que chamamos de autocratização, que é o processo inverso da democratização.
No artigo Fascismo à brasileira?, que publiquei com Jennifer de Morais, professora da UFRGS no fim de 2021, analisamos o discurso de Jair Bolsonaro após as eleições de 2018 e identificamos traços típicos de regimes autoritários: construção de inimigos comuns, exaltação de um passado mítico, desvalorização das minorias e ataque às instituições em nome de uma “guerra à corrupção”. São estratégias discursivas que alimentam o medo e justificam o autoritarismo.
Em outro artigo, publicado com Andressa Costa, pesquisadora do DX, analisamos o discurso autoritário e a propagação de fake news nos Estados Unidos, na Hungria e no Brasil, utilizando também dados do projeto V-Dem. O que percebemos é que os discursos são articulados e replicados: o que surge em um país rapidamente aparece em outro, com pequenas adaptações.
Nas últimas eleições de Trump, por exemplo, houve aquele episódio em que ele afirmou que imigrantes estavam comendo gatos nos Estados Unidos. Algo semelhante ocorreu no Brasil, na eleição em que Manuela D’Ávila foi candidata à prefeitura de Porto Alegre. Alguns dias antes do pleito, carros de som circularam em regiões periféricas dizendo que, se ela vencesse, seria “liberado comer carne de cachorro”. São narrativas absurdas, mas que seguem a mesma lógica – tanto no ambiente online quanto no offline.
Só conseguimos detectar esse caso porque havia pesquisadores em campo que tomaram conhecimento da história. Isso mostra que a desinformação circula simultaneamente no digital e no território físico, e essas duas dimensões estão conectadas.
FCW Cultura Científica – E como a educação política entra nesse enfrentamento?
Ana Julia Bernardi – A educação política é o antídoto de longo prazo contra a desinformação. Ela ajuda as pessoas a entender o funcionamento das instituições, o papel de cada poder e o impacto das políticas públicas. Nas minhas aulas, percebo o quanto os estudantes desconhecem a estrutura básica da política – o que é uma CCJ, o papel das comissões ou como se forma uma maioria parlamentar. Essa lacuna cria terreno fértil para a manipulação e o ceticismo antidemocrático. A educação política deve ensinar como pensar criticamente, não o que pensar. E deve estar articulada à educação midiática e científica, para fortalecer o repertório crítico das novas gerações.
FCW Cultura Científica – Por que a extrema-direita parece usar as redes sociais de forma mais eficaz?
Ana Julia Bernardi – Há vários fatores. O primeiro é que eles atuam de forma muito mais unificada. Trabalham em torno de pautas comuns, com poucas divergências – e, quando há alguma, tendem a deixá-la em segundo plano.
Hoje, vemos o bolsonarismo um pouco perdido justamente porque está sem o líder que unificava o discurso. Há uma certa desorientação nesse campo, mas, no geral, a extrema-direita tem uma forte capacidade de coesão, e isso chama atenção.
Outro ponto é o uso estratégico do medo, típico de regimes autoritários, do fascismo e do populismo de modo geral. É a retórica do “os imigrantes vão roubar seu emprego”, “o Brasil vai virar a Venezuela”, “você não vai conseguir alimentar sua família”. São discursos baseados no pânico moral, que apelam às emoções e às crenças mais profundas. Essas táticas são antigas – já eram descritas até nos textos de Stalin – e continuam sendo eficazes até hoje.
FCW Cultura Científica – Que caminhos você enxerga para o futuro do debate público digital no Brasil?
Ana Julia Bernardi – Precisamos avançar em três frentes. A primeira é a regulação democrática das plataformas, para que elas deixem de ser zonas de impunidade. A segunda é o fortalecimento da pesquisa aplicada, como fazemos no Democracia em Xeque, integrando ciência de dados, comunicação e ciências sociais. E a terceira é investir em educação política e midiática, formando cidadãos capazes de navegar com autonomia nesse mar de informações. Só assim poderemos construir uma esfera pública digital verdadeiramente democrática, em que o dissenso seja saudável e o diálogo volte a ser possível.


















