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Entrevista

Carlos Melo

Quando a democracia falha em oferecer respostas, como na transição atual do capitalismo, é natural que seja questionada, destaca professor do Insper, que fala também sobre as ameaças aos sistemas democráticos promovidas pelos "governantes incidentais", o perigo da desinformação, a falta de reflexão e de educação política, eleições e a importância dos partidos 

Sobre

Carlos Alberto Furtado de Melo é professor Senior Fellow do Insper. É professor de Sociologia e Política (Graduação), de Estratégia e Política (Mestrado) e do Curso de Relações Governamentais. É coordenador da Trilha de Humanidade e membro do Conselho Acadêmico do Insper.

Mestre e doutor pela PUC-SP, é analista político e pesquisador de liderança política. Foi membro do Conselho Superior do Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp. Ex-colunista do UOL e da CBN, colabora atualmente com uma série de veículos, como O Globo, o Valor, a GloboNews e CNN.

É autor de “Collor: o ator e suas circunstâncias” (Novo Conceito) e coautor de “Decadência e Reconstrução: Espírito Santo, as lições da Sociedade Civil para um caso político no Brasil contemporâneo” (Bei Editora).

FCW Cultura Científica – Professor Carlos, os candidatos pitorescos costumavam ter votação inexpressiva e não eram capazes de decidir uma eleição. O que mudou para que um candidato pouco conhecido e com quase nenhum espaço no horário político tradicional tenha provocado tamanho impacto na eleição da maior cidade do país, em um fenômeno que tem se repetido?

Carlos Melo – As eleições brasileiras sempre tiveram candidatos folclóricos, bizarros ou de gozação. A questão é que, atualmente, existem fatores que fortalecem e favorecem esses candidatos. Um fator importante é que estamos passando por um momento de transição no capitalismo. Estamos saindo de um modo de produção baseado na sociedade industrial e na prestação de serviços convencionais, saindo de uma sociedade analógica para uma sociedade digital. Essa é uma mudança que traz muito desconforto, especialmente pela quantidade de profissões que tende a desaparecer. Tenho 59 anos, nasci na periferia de São Paulo, e grande parte dos meus amigos de infância não tem colocação atualmente. Seus empregos desapareceram, e não houve, da parte deles e muito menos do Estado – que deveria se antecipar, pois as instituições existem para isso – um processo para mitigar os efeitos dessas transformações. O cidadão vinha de um cenário com carteira assinada, onde trabalhava diariamente das 8 às 17h, com hora de almoço, descansava nos fins de semana, tinha descanso remunerado, férias, décimo terceiro salário, e, em alguns casos, vale-refeição ou vale-supermercado. Ele saiu dessa realidade protegida para outra completamente desprotegida. É pura estupidez e hipocrisia falar que estamos na sociedade do empreendedorismo. É claro que o empreendedorismo tem um papel importante, mas isso não é empreendedorismo, isso é precarização. O Uber, só para citar um exemplo da nova sociedade digital, é uma precarização – com tendência a piorar, pois em breve o motorista humano poderá nem ser mais necessário. Em resumo, o Estado não se antecipou, as instituições e a política não se anteciparam a essa transformação, e quem está pagando por isso é a democracia. Esse é o pano de fundo que fortalece esse cenário.


FCW Cultura Científica – E quais fatores favorecem o surgimento desses novos tipos de políticos? 

Carlos Melo – Um fator importante é a extrema capacidade de difusão de opiniões. Quando as redes sociais surgiram, pensamos que seriam uma maravilha para se comunicar com amigos, articular ideias etc. Elas realmente trouxeram essas possibilidades, mas também serviram para aqueles que descobriram um canal de manifestação da sua fúria. Nas redes sociais, essas pessoas encontraram porta-vozes, que meu amigo Sergio Abranches chama de “governantes incidentais”. Esse fenômeno não está presente apenas nas eleições municipais ou no Brasil, mas em todo o mundo, com muitos exemplos desses governantes, como Donald Trump, Viktor Orbán, o próprio Vladimir Putin, embora tenha surgido um pouco antes, Narendra Modi, Boris Johnson, Hugo Chávez, Nicolás Maduro, Javier Milei e Nayib Bukele. No Brasil, temos Jair Bolsonaro e, mais recentemente, figuras associadas ao bolsonarismo, como Nicolas Ferreira, Carla Zambelli e Pablo Marçal. O interessante, e sobre o qual tenho escrito e falado bastante, é que essas figuras não são lideranças que conduzem um processo; elas apenas identificam e exploram o mal-estar. Esses governantes incidentais, a fúria e o sentimento antissistema estão presentes tanto na direita quanto na esquerda, como no caso da Venezuela. É um fenômeno recente que começou na Itália, na contestação ao crime organizado, com Beppe Grillo, uma história que o Giuliano da Empoli narra muito bem no grande livro Os Engenheiros do Caos



FCW Cultura Científica – Nessa mudança da sociedade analógica para a sociedade digital, a democracia continua funcionando ou ela é um sistema que favorece apenas os mais ricos, sejam pessoas, empresas, governos ou países?

Carlos Melo – Se a democracia é uma questão de valor ou uma questão pragmática? A democracia é um regime muito recente. Para conhecer sua história, recomendo a leitura de um importante livro do Robert Dahl chamado Sobre a Democracia, que conta como ela surgiu na Grécia, depois desapareceu, voltou, desapareceu novamente, e assim foi até que se consolidou, especialmente a partir da independência dos Estados Unidos, com um grande impulso após a Segunda Guerra Mundial. É, de fato, um regime novo, se considerarmos há quanto tempo a humanidade existe. Além de nova, por definição, a democracia é um regime que requer aperfeiçoamento constante. Em outro livro de Dahl, Poliarquia: Participação e Oposição, ele destaca que a democracia exige que os governos sejam responsivos, ou seja, que respondam às demandas da sociedade. Quando a democracia falha em oferecer respostas, é natural que seja questionada, pois, ao contrário da ditadura, que usa a força para evitar responder, a democracia se fundamenta na capacidade de resposta e na promoção de segurança e do bem-estar. Neste momento histórico, trazer essa segurança e bem-estar é um desafio, pois vivemos em uma época de transição, o que Gramsci, observando o início do século 19, chamou de "interregno". Na passagem do século 19 para o século 20, durante um processo similar de transformação, o mundo enfrentou duas grandes guerras e o surgimento do fascismo e do nazismo. Espero que não cheguemos a tanto, mas, infelizmente, algumas semelhanças com aquele período já parecem bem evidentes.


FCW Cultura Científica – Como a desinformação, vinda principalmente das redes sociais, tem afetado o processo eleitoral?

Carlos Melo – A opinião costumava passar por vários filtros. Lembro bem como foi difícil publicar meu primeiro artigo em um jornal de grande circulação. Primeiro, era necessário realmente ter algo a dizer. Depois, havia uma série de pessoas que tinham algo a dizer antes de você e que diziam melhor. Antes de o seu texto ser publicado, ele passava por edição, revisão e checagem. A comunicação era um processo industrial com muitas etapas. Depois que o texto estava editado, diagramado e fechado, era a hora de imprimir; o jornal era em papel. Ele passava por uma rotativa enorme, onde era impresso e, em seguida, separado e distribuído em caminhões, em um processo frenético para chegar cedo à casa das pessoas. Os assinantes liam ou não, eles não eram invadidos por aquele artigo que você escreveu. O texto estava no jornal, mas se seria lido era outra história. Isso tudo mudou. Hoje, não há mais filtro. Primeiro, surgiram os blogs, que também eram enviados por e-mail e lidos na caixa de entrada; mas, se não quisesse, você poderia simplesmente descartar. Depois, vieram as redes sociais. As pessoas entraram nas redes com a ideia de fazer amigos, como na música do Roberto Carlos, "eu quero ter um milhão de amigos", e, de repente, você tem um milhão de amigos — ou melhor, de influencers, seguidores e contatos — que estão todos ali escrevendo o que pensam, sem filtro, sentados no sofá de casa, com suas angústias e problemas, escrevendo automaticamente, e alguém está lendo. Você até pode bloquear, mas a questão é que, nesse fluxo, você é invadido. Por mais que se considere a opinião de uma pessoa irrelevante, seja sobre política, sociedade, futebol ou qualquer outro assunto, essa pessoa irrelevante ainda passará na sua frente. E, se você decidir participar do jogo e também publicar, entrará nesse fluxo. Sua opinião será difundida e muita gente comenta sobre ela, tendo qualificação para isso ou não. Quando um especialista tenta puxar o freio e dizer que não é bem assim, que aquilo que está sendo transmitido não é verdade — afinal, ele estudou, conhece  teoria e ciência — o sujeito do outro lado o chama de idiota, dizendo que ele não sabe do que fala, porque a Terra é plana.


FCW Cultura Científica – Nas eleições, temos visto que esse comportamento é cada vez mais frequente. 

Carlos Melo – Durante as eleições, vemos especialistas formados, cheios de títulos, que estudaram a vida toda para falar algo sobre o processo eleitoral, mas que, ainda assim, têm dúvidas sobre o que vão dizer. Isso é natural, afinal, ninguém sabe tudo ou é dono da verdade. Do outro lado, temos os influencers que, por entenderem de timing, de como usar as tecnologias e de quando e como postar, e por saberem como lidar com o mundo digital, de repente se sentem no direito de desqualificar o especialista, que passa a ser desprezado e até odiado. Tanto Giuliano da Empoli como outros autores, como Yascha Mounk, em O Povo Contra a Democracia, discutem essa perda de status dos especialistas. E quem são os especialistas? São advogados, economistas, politólogos, sociólogos, cientistas, técnicos de futebol — todos aqueles que perdem o valor de seu conhecimento, porque a comunicação passa a não ter mais filtro.


FCW Cultura Científica – Um argumento de quem usa as redes para desinformar é que o processo de comunicação se tornou mais democrático. 

Carlos Melo – O público que se informava por jornais, revistas e livros era restrito; era uma elite, limitada, qualificada, capaz de avaliar e ponderar. Meu argumento pode parecer elitista — e, de fato, é —, mas quando se diz que hoje as coisas melhoraram e que o acesso à informação está mais democrático, isso não corresponde totalmente à realidade, pois perdemos em qualidade. Costumo comparar essa situação com a de um pequeno vinhedo no interior de São Paulo ou Minas Gerais, que produz um vinho excepcional, mas só consegue fabricar 500 garrafas por ano. O vinho é fantástico com essa produção limitada, pois o solo e todas as condições de produção não permitem fabricar mais do que isso. Mas, com o sucesso, o produtor se empolga e decide aumentar a produção para 5 mil garrafas por ano. O que acontece? A qualidade vai por água abaixo. O produtor passa a viver do rótulo, não mais da qualidade.

FCW Cultura Científica – Com a quantidade enorme de informações e com a velocidade em que chega, somados à falta de filtro e de discernimento, como fica a educação política do cidadão? Ela tem melhorado ou piorado?

Carlos Melo – Na eleição presidencial dos Estados Unidos em 1960, Kennedy versus Nixon, houve uma transformação muito grande que foi nortear as campanhas com base nas pesquisas eleitorais. No Brasil, um marco disso foi a eleição presidencial de 1989, quando o Collor foi eleito. Quem fazia algum tipo de política no Brasil antes de 1989 deve se lembrar de como eram as campanhas. Havia todo um processo fabril no qual se bolava um panfleto, discutia com os seus pares e imprimia em uma gráfica. Depois, distribuía o panfleto na porta da fábrica, na porta da igreja, na feira, na praça, nas ruas. Quando uma pessoa passava, o candidato pedia licença e perguntava se podia conversar um pouco sobre política. Ele ou ela tentava convencer o cidadão da justeza da sua opinião e do que estava escrito no panfleto, tentava ser incisivo mas também didático. Com as abordagens baseadas nas pesquisas eleitorais, o que o candidato pensa e o que fala para o eleitor muda completamente. As campanhas descobrem o que o eleitor quer ouvir. Elas colocam 12 pessoas em uma sala, com um espelho falso para poder analisar as opiniões, classificam aquele grupo em tipos representativos da sociedade mais ampla e começam a compreender o que os diversos setores pensam. É isso que vai fundamentar o discurso político, não é mais a visão ideológica, a opinião, a discussão ou a educação. Mais do que transformar, mais do que educar, o objetivo passa a ser ganhar a eleição, pois o feio é perder. Para ganhar a eleição, o candidato só se importa em saber o que o eleitor quer ouvir. O resultado é que o eleitor, antes na televisão e hoje pelos algoritmos das redes sociais, é invadido com uma determinada informação e pensa: “É isso exatamente o que eu penso! Essa cara me representa”. Só que não é isso. O candidato sabe exatamente o que o eleitor quer ouvir. Não é que ele formulou e você se descobriu a partir do que ele disse. Você disse antes, por meio de seus gostos e de seu uso da internet, como queria ser seduzido e o candidato vai te seduzir com todas as técnicas de marketing. Primeiro pelo rádio e televisão, que vimos nessa eleição municipal que continuam importantes, e depois pelos algoritmos. 


FCW Cultura Científica – Qual é o risco de ter apenas a informação, de não ter mais o debate nem a reflexão política, como a conversa que os candidatos faziam nas ruas com os eleitores?

Carlos Melo – Antes, o candidato ia até a porta da igreja e conversava com o seu José, que era conservador, e com a dona Maria, progressista, gastando o mesmo tempo com ambos. Hoje, o candidato conservador vai direto ao seu José, não perde mais tempo com a dona Maria. E o candidato progressista faz o mesmo, ignorando o outro. Hoje, um terço pensa de um jeito e um terço pensa absolutamente o contrário. O terceiro terço é o eleitor ainda sem opinião formada. Não é a terceira via, não é o "estou esperando uma alternativa". Esse terço é simplesmente mais independente, digamos assim. E, por isso, o esforço dos candidatos está em conquistar 50% desse terço, porque as eleições recentes terminam em 51% a 49%, sendo muito acirradas, como ocorreu recentemente no Brasil e nos Estados Unidos. São eleições muito disputadas porque dois terços estão calcificados em posições distintas, e o campo de batalha está no terço que ainda pode mudar de opinião. O resultado é que não há mais programa político, preocupação programática ou visão ideológica, para o bem ou para o mal, porque as visões ideológicas nem sempre são para o bem, elas também são voláteis. O fato é que o candidato não sustenta mais, como antes, uma visão ideológica do mundo, pois ele apenas quer conquistar aquele terço fundamental para ser eleito.


FCW Cultura Científica – Nesse cenário, os partidos políticos ainda importam?

Carlos Melo – Essa é uma boa pergunta. Se partidos políticos não importarem mais, teremos uma pulverização muito grande do sistema e perderemos os interlocutores, algo que já está acontecendo. Por exemplo, quando o governo quer formar maioria no Congresso, antes conversava com meia dúzia de líderes partidários e conseguia essa maioria. Hoje, é preciso negociar com 513 parlamentares, pois cada um é senhor de si próprio. Essa pulverização é ruim, porque o custo de negociação é muito maior e a dispersão, também. Democracia implica a existência de canais de representação, caso contrário, vamos em direção à democracia direta, como a ágora grega, que não tinha partidos políticos, mas era uma sociedade de cerca de 5 mil pessoas, todas ricas e homens. Em uma sociedade complexa, se não tivermos partidos, precisamos de algo que os substitua, pois, do contrário, perderemos a capacidade de interlocução. Não dá para resolver tudo por meio de enquetes nas redes sociais. Os partidos políticos importam, mas precisam se reinventar. Não é que perderam a importância, eles ainda são relevantes, mas perderam a capacidade de organização.


FCW Cultura Científica – Quais são os problemas dessa pulverização político-partidária atual?

Carlos Melo – Uma legislação permissiva que permite a presença de 25 partidos no Congresso Nacional é uma loucura. É preciso ter cláusulas de barreira, é necessário discutir a representatividade. Se, por exemplo, um partido não tiver 5% dos votos em pelo menos nove estados, ele precisa se fundir com outro ou compor uma federação. A minirreforma de 2017 buscou esse caminho, tentando acabar com as coligações proporcionais e, ao longo do tempo, reduzir o número de partidos. Uma quantidade excessiva de partidos não significa mais democracia, significa mais custos de negociação e transação. Grupos específicos que querem representação não precisam criar novos partidos, mas sim se organizar e disputar o poder dentro dos partidos existentes. Quem tem capacidade política se mantém; quem não tem, desaparece. É claro que precisamos reduzir o número de partidos, pois a negociação se torna caótica. E o pior: quando o partido perde importância e representação, cada um pensa apenas em si. A questão torna-se individual, e o parlamentar só quer saber de se reeleger. Ele não quer discutir a questão nacional nem temas que não lhe interessam diretamente. Ele quer recursos para realizar uma obra no seu município e garantir a reeleição, sem se importar com a opinião pública geral. O resultado é a "paroquialização" da política que vemos hoje, evidenciando a fragilidade dos partidos.


Como os partidos não conseguem mais agregar diferentes interesses, cada um se volta para sua própria paróquia. Essa unidade também pouco importa para os partidos. O que interessa é ter uma grande bancada, pois é isso que gera mais recursos. Para a elite partidária, não faz diferença se o deputado José pensa igual ou vota junto com a deputada Rosa. O importante é ter ambos, José e Rosa, e aumentar o fundo partidário, reunindo mais recursos — cuja gestão é, por sinal, um ponto absolutamente obscuro. Em resumo, estamos confundindo democracia com democratismo. Os candidatos passam a vangloriar-se das candidaturas, dizendo que sonhavam com o dia em que cada um poderia ser candidato por si próprio. Muitos defendem candidaturas avulsas, o que é um absurdo. Precisamos, sim, de algum instrumento, que hoje chamamos de partido e amanhã poderá ter outro nome, mas que seja capaz de unir um determinado grupo social ou grupos sociais afins para disputar o poder.


FCW Cultura Científica – Em seu blog no UOL, o senhor acompanhou a eleição presidencial de 2018 e todo o governo de Jair Bolsonaro, um dos governantes incidentais como lembrou no início desta entrevista. Qual é o risco para a democracia quando tais candidatos são eleitos?

Carlos Melo – Recentemente, em uma entrevista para um telejornal, o apresentador me pediu para explicar o que é um regime autoritário e o que é uma ditadura. Temos a teoria, os conceitos e as definições clássicas, mas eu resolvi dizer o seguinte: o regime autoritário ocorre quando o líder no poder quer sufocar a oposição. Se puder acabar com a oposição, ele acaba. Acaba com os mecanismos de checks and balances, de freios e contrapesos, com o Judiciário controlando uma parte do processo, e o Legislativo e o Executivo controlando outras. Se ele puder desmantelar as instituições, ele desmantela; se puder colocar a oposição na cadeia, ele coloca. Se puder fazer tudo o que quiser, ele fará. Esse é um regime autoritário. Já o regime ditatorial é quando o governante já fez tudo isso. O problema da fúria é que ela quer ouvir desses governantes incidentais que eles têm soluções rápidas. A fúria tem pressa. A fúria vive com mal-estar e quer resolver seu problema rapidamente. Mas os canais da democracia são lentos. Na democracia, é preciso fazer um diagnóstico do que está acontecendo, pensar no que pode ser feito, propor alternativas, debater as alternativas, votar, implementar — tudo isso sem a garantia de que dará certo. Enquanto isso, o líder autoritário afirma: “Eu tenho a solução para a segurança pública; é só colocar bandido na cadeia, acabar com a saidinha e armar a população”. Mas, para essas soluções rápidas, ele não pode ter um Congresso, porque o Congresso vai querer debater. Ele não pode ter um Judiciário, porque o Judiciário vai dizer que aquilo não é constitucional. Ele não pode ter uma imprensa livre, porque a imprensa vai contestar. Ele não pode ter oposição nem instituições funcionando.


FCW Cultura Científica – Por que esse tipo de governante e de candidatos parece ser cada vez mais frequente?

Carlos Melo – Na eleição de 2018 no Brasil, havia um mal-estar. A esquerda estava destroçada com o impeachment e, depois, com a Lava Jato e a prisão de Lula. O centro estava desmoralizado, pois o governo Temer foi marcado por escândalos: corridinha com mala de dinheiro, apartamento recheado de notas, presidente gravado na garagem do Palácio. O resultado é que o eleitor queria um outsider, alguém que não estivesse ligado ao sistema político tradicional. Nomes como Luciano Huck e Joaquim Barbosa foram cogitados, mas, após avaliar, decidiram não concorrer. Então, o que restou para a fúria? Um outsider de dentro, por mais contraditório que pareça — alguém que já estava no sistema político, mas que nunca havia participado do poder porque sempre foi irrelevante. O centro desapareceu, o antipetismo era muito forte, e Bolsonaro venceu a eleição em uma onda semelhante à que elegeu o Donald Trump dois anos antes.


Zygmunt Bauman teve uma sacada fantástica, que ele chamou de Retropia, título de seu livro. Quando não conseguimos enxergar o futuro, começamos a sonhar com o passado. Um passado em que os Estados Unidos eram grandes, o famoso “Make America Great Again”. Um passado em que o Brasil crescia, tinha ordem e progresso e parecia menos violento — o que é uma ilusão, pois foi o período da ditadura. Essa retropia também apareceu na esquerda: em 2018, a campanha de Fernando Haddad usava o slogan “O Brasil feliz de novo”, remetendo aos anos de Lula. Assim, a solução não está no futuro, nem no presente, mas no passado. A ideia é que, se voltarmos ao passado, se formos regressivos e estabelecermos uma utopia retrógrada, resolveremos os problemas simplesmente desfazendo tudo que foi feito. Tanto que esses governos incidentais, quando surgem, qual é o objetivo deles? É o que vemos em Trump, Orbán, Bolsonaro. O objetivo é ser destrutivo, não construtivo. Destruir para depois refazer. Aí se propõe um plebiscito e uma nova constituição de acordo com o interesse do líder; fecha-se o Judiciário ou aumenta-se o número de juízes para ter o controle e esmagar as instituições. Se o país tem uma Procuradoria-Geral da República, o governante indica um procurador-geral comprometido com ele e seu grupo, e não com a lei ou a sociedade. O procurador-geral deveria defender a sociedade, mas sonha em ir para o Supremo Tribunal Federal e o governante coloca a cenoura ali na frente dele. Isso não ocorre apenas no Brasil. Os Estados Unidos, que se viam como o grande exemplo de democracia, também se mostraram bastante frágeis. Os chamados "pais fundadores" não imaginavam que a política pudesse sair do controle das elites. Costumava-se dizer que nada era mais parecido com um republicano do que um democrata no poder. Mas isso ficou no passado: a elite perdeu o controle do processo, e não se faz política sem liderança. A grande crise que enfrentamos hoje é de liderança. Quando falo de elite, não me refiro à elite econômica, mas à elite política, que possui qualificações e é capaz de conduzir um processo político. Sem isso, é a barbárie — que é mais ou menos o que já começamos a viver.


 


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Revista FCW Cultura Científica v. 2 n.3 Setembro - Novembro 2024

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