top of page

Entrevista

Gilberto Jannuzzi

Professor da Unicamp destaca que a transição energética não envolve apenas fontes renováveis mas também os sistemas de armazenamento, distribuição e a infraestrutura que precisa ser instalada, integrando as diversas fontes de substituição dos combustíveis fósseis

Sobre

Gilberto de Martino Jannuzzi é professor titular em Sistemas Energéticos na Faculdade de Engenharia Mecânica e pesquisador sênior no Núcleo de Planejamento Energético da Unicamp. É membro do Programa Fapesp de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais. Desde 2000, atua junto ao IPCC como autor principal e revisor.

Foi diretor do Programa Brasileiro de Energia do Programa Prosperidade do Reino Unido, diretor do Escritório de Transferência de Tecnologia da Unicamp, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Unicamp e diretor executivo da International Energy Initiative. Foi secretário do Fundo CTEnerg no Ministério de Ciência e Tecnologia.

Possui graduação em Matemática pela Universidade Estadual de Campinas (1978) e doutorado em Energy Studies pela University of Cambridge, Reino Unido (1983). Realizou estudos de pós-doutorado e estadias de ensino e pesquisa na Universidade da Califórnia-Berkeley, Lawrence Berkeley Laboratory, École de Mines-Nantes, Universidad de Zaragoza e UNEP RIS Centre on Energy, Climate and Sustainable Development (URC), entre outros.

É editor associado do "Annual Review of Environment and Resources". Tem experiência na área de Engenharia Mecânica, com ênfase em Planejamento Energético, atuando principalmente nos seguintes temas: eficiência energética, pesquisa e desenvolvimento, políticas para desenvolvimento de ciência e tecnologia em energia, planejamento energético, mudanças climáticas e energia renovável.

FCW Cultura Científica – A crise climática é uma crise energética? 

Gilberto Jannuzzi – Essa é uma boa pergunta e acho que no caso do Brasil ela faz sentido, haja vista a nossa história recente de seca e de falta de energia elétrica, então, ao caminharmos para um sistema mais concentrado em fontes renováveis existe esse risco. O clima está se tornando mais instável, o que coloca uma vulnerabilidade maior nas fontes renováveis. Isso talvez não fique tão presente nas narrativas, mas é algo que temos que lembrar. Os regimes de ventos, de produção de biomassa e de hidraulicidade estão fundamentalmente relacionados com o clima. As mudanças climáticas nos alertam para uma vulnerabilidade dos sistemas renováveis que precisamos entender melhor. No mundo como um todo, acho que é o contrário, a última transição energética foi fundamentalmente um maior avanço da energia fóssil de derivados de petróleo. Saímos do carvão, que também era fóssil, para petróleo e gás natural. Foi um movimento rápido em que se avançou muito em termos da economia, trouxe progresso e qualidade de vida para várias nações, mas houve um acréscimo enorme de gases de efeito estufa, entre outras emissões, como particulados. Além disso, a própria exploração do petróleo trouxe vários outros problemas. 


FCW Cultura Científica – Que fontes de energia e novas tecnologias podem ajudar a enfrentar a crise climática?

Gilberto Jannuzzi – A discussão sempre esteve muito concentrada em fontes de energia, mas considero equivocado olhar para o sistema energético como um sistema de fontes. Aliás, eu sou professor de sistemas energéticos e esclarecer isso é algo que tenho feito durante toda a minha carreira. Precisamos discutir o sistema como um todo em que as fontes de energia fazem parte. Quando falamos de transição energética, é fundamental entender melhor que, além de falar em fontes, é importante falar do sistema de distribuição e da infraestrutura que precisa ser instalada. Com mais fontes renováveis haverá mais intermitência de fornecimento, então precisamos dessa multiplicidade. Precisamos de armazenamento de energia, assim como foi feito no sistema hidroelétrico brasileiro, que foi muito inteligente nesse sentido, com a água do reservatório fazendo o papel da bateria. Outro elemento é a integração das várias fontes, porque agora estamos falando, por exemplo, não apenas de energia elétrica para casas ou para indústrias, mas também para transporte. Estamos integrando um outro setor que até recentemente não tinha a ver com o setor de energia. E um quarto elemento que entra nessa equação é a questão da eficiência energética e conservação de energia. A transição energética tem que incorporar uma estrutura de consumo e de produção eficientes. As formas como são planejadas as cidades, as rodovias, o sistema de transporte ou as residências precisam considerar a questão energética, da qual fazem parte e também podem ser unidades de produção de energia. Tudo isso aumenta a complexidade e a solução está em todos esses elementos, não está nas fontes. Estamos mudando tanto a oferta quanto a demanda, uma mudança em todo o sistema que já podia ter sido feita, mas por vários motivos, inclusive políticos e econômicos, o debate fica sempre concentrado nas fontes. Fontes mais centralizadas, porque isso também confere poder econômico e poder político. É complicado falar sobre transição energética porque não é só a tecnologia e não são só fontes de energia. Estamos mexendo com toda uma infraestrutura, com uma organização socioeconômica e ambiental que está sendo desafiada. 


FCW Cultura Científica – Qual é a situação do Brasil na transição para energias sustentáveis?

Gilberto Jannuzzi – A engenharia brasileira é de muito boa qualidade e conseguimos implantar um sistema bastante complexo, extenso e robusto. Desenvolvemos muita competência, mas o que se coloca hoje são problemas diferentes. Antes, havia uma série de equações onde as fontes eram centralizadas e os pontos de consumo estavam mais localizados. Agora, começamos a ter uma malha muito mais dispersa do ponto de vista da oferta, porque temos painéis solares em casas, indústrias e fazendas. Começamos também a explorar outras fontes de energia mais dispersas, como a eólica. A eólica offshore, por exemplo, que será crescentemente importante, está localizada em locais diferentes da rede das bacias hidrográficas. São desafios diferentes, com volumes de energia diferentes. Mais recentemente, voltamos a falar de hidrogênio, o Brasil ficou interessante para produzir um hidrogênio que está sendo chamado de hidrogênio verde, de fonte renovável, e que pode resolver alguns dos desafios da transmissão de grande volume de energia para lugares complicados. É outro vetor energético ainda não competitivo, para o qual precisamos desenvolver a infraestrutura, avançar em escala e na melhoria de processos. Essa nova era energética traz, é claro, desafios científicos e tecnológicos e também outros desafios importantes, como de infraestrutura. Se quisermos falar de hidrogênio e de transporte elétrico, precisamos de infraestrutura que permita o uso em escala e que aproveite essas novas maneiras de produzir e de consumir energia. Não é só infraestrutura física, mas infraestrutura de regulação de mercados, que também precisa ser desenvolvida. Ou infraestrutura de certificação, se quisermos garantir, por exemplo, que a cadeia do hidrogênio não contenha elementos de combustíveis fósseis. Mesmo no caso do biodiesel ou do etanol, precisamos desenvolver uma economia de carbono capaz de garantir que esses modelos energéticos sejam neutros em termos de emissões. 




FCW Cultura Científica – Poderia falar sobre a importância do impacto da transição energética nas populações vulneráveis, que é um objeto de estudo de seu grupo de pesquisa?

Gilberto Jannuzzi – Quando falamos em transição energética, a tecnologia é apenas parte do processo, porque também precisamos qualificar a transição como justa, é um cuidado que deve estar presente. As soluções em energia, tanto de tecnologia como de instrumentos de regulação ou de instrumentos econômicos, podem incluir, por exemplo, questões de gênero e de equidade como valores a serem perseguidos. A própria possibilidade de produzir localmente e a geração distribuída podem servir como benefício para populações que antes dependiam de energia de longa distância. Precisamos desenvolver mecanismos para financiar esses empreendimentos locais e ter uma infraestrutura que faça com que a população entenda a tecnologia e seja realmente dona do processo. Quem tiver possibilidade de produzir energia conseguirá vender. Existem novos modelos de negócio que a transição energética poderá favorecer, mas, para isso, precisamos mudar a maneira como a energia é transacionada em nossa sociedade. Isso não é algo particular do Brasil, está ocorrendo em vários lugares. Necessitamos de novos instrumentos de regulação, porque há aspectos que precisamos garantir, como harmonização de padrões e de qualidade, pois não se pode colocar qualquer tipo de produto na rede elétrica, há padrões que precisam ser atendidos. São novos fatores, que estão dentro do que entendemos por transição energética com equidade social ou com equidade de gênero. A transição energética não é só um problema de fontes, é um problema mais complexo com muitos aspectos que precisam ser colocados.


FCW Cultura Científica – Em junho, a revista The Economist colocou a energia solar em sua capa, ressaltando o “crescimento exponencial que vai mudar o mundo”. A China é, de longe, o país que mais tem investido no desenvolvimento de tecnologias dessa fonte. Qual é sua opinião sobre o potencial da energia solar para o Brasil?

Gilberto Jannuzzi – A energia solar é muito relevante para o Brasil. E, aproveitando a questão da equidade, de que falei anteriormente, um detalhe importante é que no Brasil a energia solar é mais abundante nas áreas mais pobres. Ou seja, é algo interessante de se explorar levando em conta o problema da pobreza, pois a energia solar pode fazer diferença econômica para a população das regiões onde é mais abundante. Há vários avanços importantes na tecnologia fotovoltaica e de armazenamento de energia. Já tivemos várias gerações de tecnologias de captura e de produção de eletricidade, mas existem limites técnicos, por isso é importante sempre falar de maneiras eficientes de usar a energia. É importante também desenvolver sistemas ou modos de vida mais eficientes, que tenham uma pegada ou uma necessidade de energia menor, para ter os benefícios que queremos ter no futuro. É um processo longo. É também um processo de valores e de cultura que precisamos mudar e isso também faz parte da transição energética. Nós herdamos uma vontade de consumir muito grande, fizemos projetos grandes para cidades grandes, para carros grandes e assim por diante. Mas o futuro não será mais assim. Não temos a solução ideal, mas a maneira como aprendemos a usar energia é incompatível com o futuro, temos que desaprender e entrar em um novo ciclo. Um ciclo que não será mais o do carbono e que provavelmente estará mais centrado em eletricidade e hidrogênio, mas no qual será imprescindível ter uma sociedade de baixo consumo de energia, com sistemas muito mais eficientes e que os hábitos sejam menos exigentes em termos energéticos. Além disso, estamos entrando em um cenário com desafios climáticos importantes que vão exigir mais energia. Por exemplo, com o aumento na intensidade e na frequência das ondas de calor, haverá um aumento no uso dos sistemas de refrigeração de alimentos ou dos próprios humanos e animais, pois, do contrário, podemos até morrer, o que já está ocorrendo. Mas só pensar em ar-condicionado não é a solução. Mesmo que se queira consumir menos, haverá desafios importantes para atender eventos extremos o tempo todo. Os eventos extremos também colocam um estresse maior no sistema energético, que terá que aguentar mais tornados, furacões, chuvas, temperaturas altas e temperaturas baixas. Tudo isso afeta os materiais, que precisarão ter mais durabilidade e ser mais resistentes. 



FCW Cultura Científica – O que é o Plano de Ação Climática (PAC) 2050? 

Gilberto Jannuzzi – O PAC 2050 é um projeto do Governo do Estado de São Paulo produzido a partir do objetivo estabelecido a partir do Acordo de Paris de chegar ao ano 2050 com zero de emissões de dióxido de carbono. Esse foi o espírito do PAC 2050, que foi conduzido pelo governo estadual na época (2021 e 2022) com financiamento alemão. Nós trabalhamos vendo as possibilidades do Estado de São Paulo e do que ele deveria fazer para chegar em 2050 neutro em termos de emissão de carbono. Vimos que seria muito pouco provável que o estado conseguisse fazer todas as transformações necessárias, não apenas no sistema energético mas no sistema de consumo, que nos levasse à neutralidade em 2050. Então, decidimos por um cenário mais realista, com uma redução importante nas emissões mas que ainda implicaria na compra de emissões negativas de outros estados. Como vivemos em uma federação, podemos ter esse tipo de mecanismo de certificados de carbono. O PAC 2050 resultou em um exercício muito interessante, porque nele começamos a colocar em pauta transformações importantes em eletrificação dos transportes, em saneamento, em coisas que vão demorar para serem feitas, mas que precisam começar. 


FCW Cultura Científica – Todos os projetos e iniciativas para transição energética passam pela necessidade de financiamento. 

Gilberto Jannuzzi – Financiamento é uma questão fundamental para a transição energética. Vamos precisar de muito dinheiro para a transformação e o dinheiro público não será suficiente. No Estado de São Paulo, fizemos um exercício com o PAC 2050 para analisar o quanto do orçamento público poderia ser usado na transição energética sem prejudicar as outras áreas e o quanto mais seria necessário, porque precisamos, por exemplo, no caso do transporte, de estradas, de postos de abastecimento elétrico e de painéis solares. Os investimentos necessários para chegar no cenário que imaginamos implicaria em 70% de investimento privado. É um dinheiro que precisa aparecer e, para isso, a transição energética tem que ser interessante para o capital privado. Isso tudo tem que estar em sintonia com o ambiente regulatório, que tem que favorecer esse tipo de investimento. Os novos mercados têm que surgir, o mercado de carbono tem que aparecer, porque ele pode puxar muito desse investimento privado.


FCW Cultura Científica – De modo geral, no mundo o subsídio precisa passar da indústria fóssil para as outras energias?

Gilberto Jannuzzi – O mundo precisa desincentivar a indústria fóssil e isso é um paradigma. Migrar todo o arcabouço político, regulatório e econômico para as energias renováveis é algo muito difícil. Em toda Conferência das Partes (COP) a briga é muito forte, mas ela tem que ser erodida, se não nós não progredimos. Estamos perdendo e o problema não vai desaparecer. 




 




LeonardoSilva.jpg

Revista FCW Cultura Científica v. 2 n.3 Setembro - Novembro 2024

Edições anteriores:

bottom of page