Entrevista
Lilian Rolim
Professora da Unicamp fala sobre o impacto para a democracia do aumento da desigualdade econômica, os efeitos da recessão sobre a desigualdade salarial, o problema da inflação, o peso da redução do papel do Estado e alternativas para uma distribuição de renda mais igualitária
Sobre
Lilian Nogueira Rolim é professora no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da diretoria da Associação Keynesiana Brasileira.
É doutora em Ciências Econômicas pela Unicamp e mestre em Macroeconomics and Financial Policies pela Université Paris XIII (França) e em Ciências Econômicas pela Unicamp. Bacharela em Ciências Econômicas pela Unicamp com intercâmbio na University of London (Reino Unido).
Suas áreas de interesse em pesquisa estão relacionadas a distribuição de renda, crescimento econômico, inflação e modelagem baseada em agentes.
FCW Cultura Científica – Professora Lilian, como o aumento da desigualdade econômica pode impactar a sustentação dos sistemas democráticos?
Lilian Rolim – Acho que o ponto principal é que o sistema econômico não está proporcionando adequadamente uma estrutura de proteção social. Esse problema, observado ao redor do mundo, apresenta várias dimensões. Uma delas é a dificuldade de se encontrar trabalhos de qualidade. No passado, essa realidade era diferente, com empregos mais estáveis e melhores possibilidades de negociação, tanto salarial quanto nas condições de trabalho. Essa desestruturação nas relações de trabalho coloca os trabalhadores – principalmente os de renda mais baixa, mas também os de renda média – em uma situação de vulnerabilidade muito maior do que anteriormente. Isso é uma consequência do sistema neoliberal. Outra consequência é a redução do papel do Estado, que intensifica a fragilidade dos trabalhadores de rendas baixa e média. Essa redução é um fenômeno mundial, mas se torna mais problemática em países que ainda não alcançaram maturidade em seu desenvolvimento econômico. À medida que o Estado deixa de fornecer serviços básicos – por exemplo, um sistema de saúde adequado ou uma educação que promova efetivamente uma transformação na estrutura social –, amplia-se a fragilidade daqueles com menor renda. Esses fatores estruturais reforçam as desigualdades e promovem uma insatisfação com o sistema econômico vigente, gerando na população a sensação de que o sistema não entrega os resultados esperados ou os que proporcionava anteriormente. Essa insatisfação se manifesta de forma bastante clara no descontentamento com o sistema político e, em última instância, com o sistema democrático. Uma consequência disso é que a ampliação das desigualdades e a redução do papel do Estado têm levado à eleição de representantes mais autoritários e com menos apreço pela democracia.
FCW Cultura Científica – Poderia falar sobre seu estudo que analisou os efeitos da recessão brasileira sobre a desigualdade salarial?
Lilian Rolim – A economia brasileira entrou em uma recessão profunda em 2014, quando a queda do PIB impactou fortemente o mercado de trabalho. O objetivo do estudo foi analisar o efeito dessa recessão sobre a desigualdade salarial no país, levando em consideração as diferenças por sexo. Os resultados mostraram uma elevada assimetria e dispersão na distribuição dos salários no Brasil. A recessão econômica de 2015-2016 reduziu a desigualdade de renda do trabalho no país e as diferenças entre homens e mulheres, pois aumentou a proporção de trabalhadores com salários mais baixos. Trata-se de uma dimensão estrutural que se relaciona com uma dimensão conjuntural observada em momentos específicos. É claro que uma recessão, ao afastar pessoas de seus postos de trabalho, tende a ampliar a desigualdade, se considerarmos o total da população. No entanto, ao considerar apenas aqueles que permaneceram empregados, observou-se uma redução da desigualdade que também se expressou em termos de gênero. Houve uma aproximação do salário médio das mulheres em relação ao salário médio dos homens, o que não significa que houve um avanço em termos de melhoria global, mas sim que a recessão econômica levou a um achatamento de salários e a uma piora das condições de trabalho daqueles que estavam em melhores condições, que observaram uma redução mais acentuada em seus salários.
FCW Cultura Científica – Em outra pesquisa, você desenvolveu um modelo econômico que propõe uma distribuição de renda mais igualitária. Que instrumentos podem ser empregados para se atingir uma melhor distribuição, mantendo o crescimento econômico?
Lilian Rolim – Ao analisarmos exemplos de ampliação das desigualdades, observamos que o desmonte do Estado intervencionista também implica uma redução dos papéis redistributivos do Estado. Reconstruir esses papéis pode ser uma forma de lidar com a questão da distribuição de renda. Na literatura científica sobre essas dimensões, há uma separação entre dois papéis distintos do Estado, que busquei explorar no modelo que desenvolvi no doutorado com meus orientadores Carolina Baltar e Gilberto Lima. Um deles seria o papel mais redistributivo – e esse papel tende a ser mais aceito na economia tradicional e no debate público mais conservador –, que envolve o entendimento de que o mercado gera uma distribuição de renda bastante desigual e que cabe ao Estado atenuar essas desigualdades geradas pelo próprio mercado. Instrumentos que o governo pode usar nesse caso são aqueles que alteram a distribuição da renda depois que ela foi gerada, como a tributação e transferências de renda. No caso do Brasil, um exemplo seria uma tributação mais progressiva. Quanto mais progressiva for a tributação do imposto de renda, mais o sistema tributário atuará na redução das desigualdades na geração de renda. Da mesma forma, programas como o Bolsa Família ou o Benefício de Prestação Continuada ajudam a elevar a renda daqueles que têm menos. Tem havido um grande debate sobre a questão da taxação; o próprio G20 tem focado bastante nesse ponto, buscando modificar os sistemas tributários para que promovam mais igualdade por meio da taxação de super-ricos.
Outro papel do Estado é o de regulador ou agente que influencia a dinâmica de determinação da distribuição de renda no mercado, principalmente no mercado de trabalho. Nesse caso, incluem-se todos os instrumentos de que o governo dispõe, de regulação e de legislação, e até um fator muito importante que é a sindicalização. A redução da sindicalização tem sido associada a uma significativa perda de poder de barganha dos trabalhadores, o que tende a impactar desfavoravelmente a renda das classes mais baixas, ampliando desigualdades. O salário mínimo também é um instrumento de suma importância para alterar a distribuição de renda. Vale mencionar o “efeito farol”, que é a ideia de que o salário mínimo afeta a distribuição de renda não só daqueles que o recebem, mas também daqueles que ganham um pouco mais, funcionando como um farol para a estrutura salarial. Esse conceito foi desenvolvido pelos professores Paulo Renato Souza e Paulo Baltar na Unicamp. Esses são elementos que permitem ao Estado atuar na distribuição de renda no momento em que ela é determinada, e não apenas como um fator atenuador ex-post, que age depois. Todos esses instrumentos têm sido desmobilizados, e sua reconstrução pode contribuir para uma melhora na igualdade.
FCW Cultura Científica – Muitos defendem a diminuição do papel do Estado como algo imprescindível para o crescimento econômico e para a ampliação da democracia, mas os resultados disso têm deixado a desejar. Para que esses instrumentos que você destacou sejam reconstruídos e funcionem bem, qual é a importância do papel do Estado?
Lilian Rolim – Nos elementos que mencionei, a ampliação da participação do governo nos processos de barganha – como no caso do salário mínimo, que influencia as negociações com as empresas – é uma atribuição do Estado. Em uma dimensão mais de longo prazo, todos os serviços que o governo fornece e que, de certa forma, ajudam a reduzir as desigualdades mais básicas têm efeito na diminuição da desigualdade de renda. Desigualdade é um conceito muito amplo, com diferentes facetas. Existe a desigualdade no acesso a serviços básicos, o que dificulta que as pessoas avancem em termos de aprendizado ou tenham melhor acesso a transporte e saneamento básico. Além disso, cada vez mais devemos considerar outra dimensão extremamente importante: a proteção do Estado em casos de eventos climáticos extremos. Tudo isso se soma. Todas essas dimensões de desigualdade afetam as oportunidades de vida, que acabam se refletindo como desigualdade econômica. No entanto, é importante pensar na desigualdade como algo mais amplo, pois a renda é apenas um indicador da qualidade ou das possibilidades de vida. Nesse sentido, o papel do Estado é fundamental. Sempre que se reduz o acesso a serviços que o Estado deveria proporcionar à população, aqueles que mais precisam são os mais afetados, resultando em uma ampliação das desigualdades.
FCW Cultura Científica – Como os salários influenciam a desigualdade e o desenvolvimento econômico?
Lilian Rolim – Há duas dimensões principais relacionadas à forma como a literatura entende o papel do salário e sua relação com a desigualdade ou com a distribuição de renda. A primeira é pensar na distribuição dos salários, em que uma minoria ganha cada vez mais que o restante, em um cenário que tem se ampliado mundialmente com os altíssimos salários para executivos, por exemplo. A segunda dimensão é considerar a relação entre capital e trabalho, ou seja, a desigualdade não entre os trabalhadores, mas entre quem recebe renda do trabalho e quem recebe renda de capital na forma de lucros. Essa dimensão, conhecida como distribuição funcional da renda, é bastante enfatizada por uma parte da literatura econômica de orientação kaleckiana. No Brasil, nas décadas de 2000 e 2010, houve um aumento nos salários da base, que levou a uma redução na desigualdade salarial. Houve também uma ampliação significativa da parcela salarial da renda, com uma porcentagem maior da renda gerada na economia sendo direcionada para os trabalhadores. Como entender as implicações desse processo? Isso remete à relação entre desigualdade e crescimento, ou desigualdade e atividade econômica. Existem diversos mecanismos por trás dessa relação, que pode ser ambígua e depender do que causa a mudança na distribuição de renda. Muitas vezes, há um mecanismo que altera a distribuição de renda, mas que também tem efeito direto sobre a atividade econômica. Dessa forma, a correlação entre essas duas variáveis pode ser ora positiva, ora negativa.
FCW Cultura Científica – Seu estudo indica que esse é um aspecto importante quando se analisa o que ocorreu no Brasil naquele período.
Lilian Rolim – Sim, mas se pensarmos em termos teóricos sobre uma mudança na distribuição de renda e sobre quais efeitos ela pode gerar na atividade econômica, então há uma grande discussão e uma extensa literatura sobre isso. Basicamente, resumindo muito, é provável que haja um efeito muito forte de uma redução das desigualdades sobre o consumo. As classes mais baixas, considerando a distribuição salarial, ou a classe trabalhadora, no caso da distribuição funcional, tendem a consumir uma parcela maior da renda que recebem do que as classes com rendas mais altas. Redistribuir renda pode ampliar o consumo, gerando um efeito também sobre o investimento. A ampliação do consumo e, consequentemente, da demanda pode levar à necessidade de maiores investimentos, mas a própria lucratividade também é um fator determinante para o investimento, o que pode gerar efeitos ambíguos. Se a lucratividade for muito importante para a definição do investimento, o aumento do consumo pode não ser suficiente para compensar uma possível queda do investimento à medida que a desigualdade for reduzida. E, se considerarmos a dimensão de economia aberta, ou seja, as exportações líquidas, também teríamos mais um elemento modificando essa relação. Em termos empíricos, há uma série de estudos sobre como essa relação ocorre, apontando justamente a possibilidade de efeitos distintos em períodos e países diferentes. No entanto, isso não significa que a mudança na desigualdade tenha sido necessariamente a causa dos processos desencadeados; pode haver outro fator que tenha afetado tanto a desigualdade quanto a atividade econômica. No caso do Brasil, isso permite uma interpretação sobre o que ocorreu no período que chamamos de "crescimento com inclusão social", quando tivemos crescimento concomitante a um processo favorável de redistribuição de renda. De acordo com dados da pesquisa que desenvolvi no mestrado, junto com minha orientadora Carolina Baltar, até meados de 2010, o processo de redistribuição funcional da renda – isto é, o aumento da parcela salarial – foi um fator que ajudou a ampliar a atividade econômica no Brasil. No entanto, uma série de mudanças na economia, como o maior endividamento das famílias e das empresas e mudanças na forma de inserção da economia brasileira no cenário internacional, modificaram essa relação. Talvez a nossa pergunta não deva ser “o que acontece se temos uma redistribuição de renda em termos da atividade econômica?”, mas sim considerar como conciliar objetivos importantes: avançar na igualdade e crescer mais, de forma sustentável.
FCW Cultura Científica – Qual tem sido a importância da inflação para o aumento da desigualdade?
Lilian Rolim – Nos países centrais, o retorno da inflação trouxe de volta o debate sobre o tema, uma vez que os preços estiveram estáveis por muito tempo. No Brasil, a inflação é um tema que nunca saiu de pauta, pois sempre foi um problema persistente. A inflação que vivemos nos últimos anos tem características peculiares e está muito associada a choques de custos, causados tanto pela desestruturação gerada pela pandemia quanto pela invasão da Ucrânia pela Rússia, que aumentou excessivamente os preços de alimentos e fertilizantes. Essa "inflação importada" ocorre quando há choques cambiais e mudanças em preços externos. Esse tipo de inflação tem um efeito mais forte sobre as classes mais pobres, que consomem uma proporção maior da sua renda em bens básicos, como alimentos e transportes. Isso é o que chamamos de "desigualdade de inflação", que é a ideia de que as pessoas são expostas a diferentes níveis de inflação. Já existe um efeito direto e mais perverso da inflação sobre as classes mais baixas, mas quando temos uma dinâmica de inflação muito associada ao custo de alimentos e transportes, teremos a desigualdade de inflação, que se materializa justamente como um nível mais alto de inflação enfrentado por aqueles com renda mais baixa. Isso adiciona uma segunda dimensão de desigualdade associada à inflação. Uma terceira dimensão tem relação justamente com a forma como se busca resolver o problema inflacionário. A despeito do diagnóstico de que essa inflação tem relação com o setor externo, ou seja, é uma inflação importada, a resposta da maioria dos países – e isso foi muito criticado por alguns economistas – foi o regime de metas de inflação.
FCW Cultura Científica – Como isso funciona?
Lilian Rolim – O regime de metas de inflação busca reduzir a taxa de inflação por meio de um instrumento, que é a taxa de juros. Esse regime tem um objetivo: a meta de inflação. Juros e inflação se relacionam nesse arcabouço teórico por meio da taxa de desemprego. Se a taxa de juros é alta, a atividade econômica é desestimulada, o que amplia o desemprego. Essa ampliação do desemprego leva a uma redução da inflação por diferentes razões, o que faz com que explorar a relação entre desemprego e inflação dessa forma seja captado na chamada Curva de Phillips, que indica um trade-off entre desemprego e inflação. Na maioria dos países, houve elevação da taxa de juros como forma de lidar com uma inflação mais alta, mas isso pode levar a um aumento do desemprego, que seria a forma de reduzir a inflação dentro desse arcabouço teórico, independentemente de sua causa relacionada a choques de custo. Nessa terceira dimensão, o resultado é a ampliação do desemprego e a piora na desigualdade. Quando temos aumento do desemprego, há um efeito muito forte sobre aqueles que estão na base da pirâmide salarial, que perdem o emprego primeiro e estão mais expostos a uma recessão. Quando a desigualdade salarial é ampliada e piora o poder de barganha dos trabalhadores, aumentam as desigualdades de um modo geral. A própria resposta do regime de metas de inflação acaba ampliando as desigualdades, que já foram inicialmente intensificadas por conta do choque de preços externos. Isso é o que temos visto nos últimos tempos, várias dimensões que acabam se combinando.
FCW Cultura Científica – Inicialmente, a globalização foi vista também como alternativa para reduzir a desigualdade entre países, mas isso não ocorreu. Com o crescimento da polarização entre economias, estamos vendo um retrocesso na globalização?
Lilian Rolim – Acho que, mais do que uma resposta definitiva em relação à redução ou manutenção do processo de globalização, o que temos visto é um processo de reestruturação da economia mundial. Se isso reduzirá a dimensão da globalização, é algo que ainda não sabemos, mas temos visto cada vez mais movimentos e conflitos que expressam uma maior polarização. Os principais personagens desse processo são os Estados Unidos, de um lado, e a China, do outro. Para os países do Sul Global, essa mudança no cenário mundial representa uma oportunidade de se reposicionar e, eventualmente, ganhar mais espaço. No entanto, isso é algo que precisa ser bem explorado estrategicamente. Em razão dessa reorganização, temos visto o crescimento das relações da China com o Sul Global, o que contrasta com a postura dos Estados Unidos. Também temos observado a ampliação da importância dos BRICS, que atesta justamente esse movimento, com o Sul Global mais unido e tentando se colocar como um agente relevante na economia mundial. Ao mesmo tempo, há uma grande preocupação nos países centrais em relação ao que estão perdendo, principalmente com a ascensão da China. A reintrodução da política industrial nos países centrais é um indicador dessa preocupação.
FCW Cultura Científica – Como manter um sistema democrático em um cenário em que grande parte da população não participa de um eventual crescimento econômico de um país e as desigualdades se ampliam?
Lilian Rolim – Há diversas formas de como a desigualdade se relaciona com a própria ideia de democracia. Manter um sistema democrático, em sua forma mais idealizada, pressupõe maior igualdade do que temos observado. A existência de desigualdades econômicas têm um efeito muito importante e pode levar à desigualdade política. O fato de existirem tantas assimetrias de renda cria espaço para que certas narrativas políticas tenham mais peso. Essas desigualdades geram uma ausência de participação democrática plena e efetiva. Um segundo elemento é que a desigualdade cria insatisfação com o sistema, o que, do meu ponto de vista, pode levar à insatisfação com o próprio sistema democrático. A partir disso, surgem respostas a essas insatisfações, que muitas vezes não resolvem o problema, mas acolhem uma sensação de perda que transparece no debate público. A existência de desigualdade acaba potencializando esses dois efeitos de forma negativa sobre a democracia. Porém, há um efeito na direção inversa: em um sistema democrático no qual a participação não é plena, muitas vezes o debate que antecede uma eleição, por exemplo, é influenciado pela visão de algumas elites, que possuem mais poder econômico. Isso resulta em um sistema democrático que prioriza pouco soluções que poderiam reduzir as desigualdades. Uma narrativa que frequentemente se apresenta no debate político é: “precisamos reduzir a taxação para os mais ricos, pois são eles que vão gerar mais emprego”. Essa é a ideia do trickle-down economics, que acaba favorecendo políticas que muitas vezes ampliam as desigualdades, e nem sempre geram tais efeitos sobre os empregos, por exemplo. E essa ampliação das desigualdades retroalimenta a insatisfação com o sistema democrático, que, no fim das contas, não está entregando o que seria esperado por boa parte da população.