Entrevista
Laerte Sodré Jr.
Coordenador da participação brasileira no projeto GMT explica como o Telescópio Gigante Magalhães ampliará o conhecimento sobre fenômenos como energia escura e matéria escura, além da própria origem e formação do universo. A busca por planetas parecidos com a Terra e novos projetos de levantamento do céu são outros destaques da entrevista
Sobre
Professor titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), onde já foi diretor. É coordenador do GMT Brazil Office, responsável pela participação brasileira no projeto GMT (Giant Magellan Telescope), e coordenador da São Paulo Astronomy Network (SPAnet).
Participa de grandes projetos de levantamentos de galáxias: J-PAS (Javalambre Physics of the Accelerating Universe Astrophysical Survey, uma colaboração com a Espanha), PFS (Prime Focus Spectrograph, no telescópio japonês Subaru), J-PLUS (Javalambre Photometric Local Universe Survey, também com a Espanha) e S-PLUS (Southern Photometric Local Universe Survey, liderado pelo IAG).
Bacharel em física, mestre em astronomia e doutor em astronomia pela USP. Fez pós-doutoramento no Royal Greenwich Observatory em Cambridge. Trabalha na área de astronomia, com ênfase em astrofísica extragaláctica, atuando principalmente no estudo de aglomerados de galáxias, cosmologia observacional, classificação de galáxias, inteligência artificial em astronomia e no planejamento de grandes levantamentos no céu.
FCW Cultura Científica – Professor Laerte, quais são os maiores observatórios ópticos terrestres?
Laerte Sodré Jr. – Há grandes observatórios concentrados em locais como Chile, Havaí e as Ilhas Canárias. No hemisfério Sul, na região dos Andes, temos os quatro telescópios VLT, com 8,2 metros de diâmetro cada, e o Gemini, com 8,1 metros. No hemisfério Norte, há o Gran Telescopio Canarias, na Espanha, com 10,4 metros e, em Mauna Kea, no Havaí, os dois telescópios Keck, com 10 metros cada um, além do Gemini Norte, com 8,1 metros. Esses telescópios, que são extensivamente usados pela comunidade internacional, operam na região óptica do espectro e no infravermelho próximo, que é o intervalo de comprimento de onda que acessamos aqui do solo. Eles permitem um grande número de estudos, mas têm limitações. Por exemplo, um tópico que tenho particularmente muito interesse é o da evolução de galáxias. Na região óptica do espectro, conseguimos ir essencialmente até redshift [desvio para o vermelho] da ordem de 6 ou 7. Então, observamos os objetos mais distantes até redshift 7 com os instrumentos atuais. Investigamos vários aspectos da evolução de galáxias, como elas crescem, como as estrelas se formam, mas não conseguimos observar a época do nascimento das galáxias. Isso é algo que o Telescópio Espacial James Webb está começando a fazer e que possivelmente vamos ter que esperar ainda a próxima geração de telescópio espacial, o Roman, para conseguir de fato mergulhar no período da história do universo que chamamos de reionização e que corresponde às primeiras dezenas ou centenas de milhões de anos após o Big Bang, que é quando imaginamos que as primeiras estrelas e galáxias foram formadas. É um período ainda muito mal conhecido e que somente agora estamos começando a investigar.
FCW Cultura Científica – Isso é algo que poderá ser feito com os novos grandes telescópios que entrarão em funcionamento nesta década e na próxima?
Laerte Sodré Jr. – A geração atual contempla telescópios com até cerca de 10 metros de diâmetro e a próxima geração de telescópios ópticos de grande porte terá instrumentos com área coletora muito maior. Os três principais projetos em desenvolvimento são o GMT [Giant Magellan Telescope], o TMT [Thirty Meter Telescope] e o ELT [European Extremely Large Telescope]. O ELT será o maior telescópio, está sendo construído pelo European Southern Observatory no norte do Atacama e possivelmente será o primeiro deles a entrar em operação. Todos esses novos telescópios são obras de arte em termos de tecnologia, o ELT, por exemplo, terá 39 metros de diâmetro e seu espelho primário será um mosaico de 798 espelhos menores, montados e alinhados com precisão de nanômetros, que é a precisão necessária para se manter a qualidade óptica do instrumento. O TMT e o GMT são dois projetos que dependerão muito do apoio da National Science Foundation (NSF), dos Estados Unidos. E, neste momento, há uma discussão na NSF porque aparentemente não existem recursos suficientes para financiar o TMT e o GMT e um dos dois deverá ser o escolhido. Acho que será o GMT, por dois motivos principais. Em primeiro lugar, o GMT já está sendo construído, na região mais ao sul do deserto de Atacama, por vários parceiros internacionais que integram o projeto, nós do Brasil inclusive. Além disso, o TMT enfrenta dificuldade com o sítio escolhido, em Mauna Kea, no Havaí, considerado sagrado pela população local, que diz já ter telescópio demais lá e que uma nova e imensa construção descaracterizaria ainda mais a região.
FCW Cultura Científica – Como será o o GMT, o Telescópio Gigante de Magalhães, e o que permitirá fazer?
Laerte Sodré Jr. – A ideia desses grandes telescópios em geral começa muito antes. O GMT começou a ser pensado antes dos anos 2000 e, por volta de 2010, já estava constituído o consórcio participante. O projeto de participação do grupo brasileiro conta com apoio da Fapesp desde 2014. O GMT terá sete espelhos em uma montagem bastante original, compondo um conjunto no qual a área efetiva corresponderá a um espelho monolítico com 24,5 metros. Para se ter uma ideia da grandeza do projeto, cada um desses espelhos tem 8,4 metros, quer dizer, um único espelho equivale ao dos maiores telescópios ópticos em operação atualmente. Seis dos espelhos do GMT estão prontos e o último espelho começou a ser fabricado. A fabricação de um espelho desses demora alguns anos, porque é preciso cozinhar o vidro e depois esperar quase um ano só para o vidro esfriar, é uma tecnologia que está longe de ser trivial e tem um único laboratório fazendo esses espelhos, que fica no Arizona. Algumas pessoas me perguntam se o GMT vai poder competir com o ELT, que será maior. Certamente, primeiro porque o céu é grande o suficiente para que se tenha objetos de interesse para todos. Além disso, o GMT terá uma tecnologia de óptica adaptativa muito sofisticada aplicada a um campo muito maior do que no caso do ELT, abrindo novos nichos de ciência. No GMT, a luz vai chegar aos sete espelhos e então irá para um conjunto de outros sete espelhos secundários, cada um associado a um dos espelhos primários, que levarão a luz para um foco onde estão os detectores. Esses espelhos secundários são adaptativos e vão corrigir as imagens de modo a reduzir a cintilação. Quando se olha para o céu, é costume dizer que as estrelas piscam. O que é esse piscar? A luz das estrelas é mais ou menos uniforme e esse efeito é uma consequência da turbulência da atmosfera, do gás entre nós e as estrelas, que está em movimento e não é uniforme. Isso produz difração nos raios luminosos que vêm das estrelas e resulta na cintilação. No GMT, usamos uma técnica – desenvolvida para uso em satélites espiões durante a Guerra Fria – que permite corrigir o efeito de cintilação de modo a melhorar a qualidade de imagem. Não é uma tecnologia de prateleira, é uma tecnologia muito sensível e nós, aqui no Brasil, conseguimos este ano ter controle total desta tecnologia.
FCW Cultura Científica – Como assim?
Laerte Sodré Jr. – No projeto brasileiro do GMT, que teve o professor João Steiner [1950-2020] como pesquisador responsável no início, incluímos o upgrade do sistema de óptica adaptativa do Telescópio SOAR. No SOAR, um telescópio com 4 metros instalado no Chile, a comunidade brasileira tem controle de um terço do tempo. Fica no mesmo pico onde está o telescópio Gemini Sul e ao lado de onde vai ficar o novo telescópio Vera Rubin, perto da cidade de La Serena, onde há uma grande concentração de telescópios. O SOAR usa um sistema de óptica adaptativa e achamos que se propuséssemos fazer sua atualização, isso permitiria aprender essa tecnologia. Construímos um laboratório de óptica, desenhamos todo o hardware necessário e desenvolvemos todo o software. A maior parte do esforço para desenvolvimento desse tipo de sistema é em software, mais do que hardware, que também teve desafios incríveis que tivemos que superar. Deu tudo certo e neste exato momento o instrumento está sendo instalado no SOAR. Esse conhecimento que desenvolvemos permitirá trabalhar também na parte de óptica adaptativa do GMT, porque até agora não tínhamos competência para pleitear a participação nesta área extremamente sofisticada. Temos uma equipe altamente capacitada para o desenvolvimento desta tecnologia e, com isso, ampliamos o nosso potencial de participação no GMT.
FCW Cultura Científica – Como funciona a organização no GMT e quem cuida da participação brasileira?
Laerte Sodré Jr. – O GMT é um consórcio internacional com a participação de instituições de diversos países e tem uma organização central. No Brasil, criamos o GMT Brazil Office, que é liderado pelo IAG-USP e tem como parceiros a Univap, o Instituto Mauá de Tecnologia e a Escola Politécnica da USP. Eu e a professora Claudia Mendes de Oliveira somos os coordenadores. O GMT Brazil Office tem uma atividade intensa no desenvolvimento de vários instrumentos, que envolve desenho óptico, desenho mecânico, toda a parte de engenharia de sistema e software. Estamos conseguindo inclusive contratos internacionais para auxiliar parceiros em seus projetos. Por exemplo, no momento trabalhamos em conjunto com colegas na Austrália no desenvolvimento de um sistema de observação com fibras ópticas para utilização no GMT. Os instrumentos do GMT são extremamente sofisticados e devem ser construídos de acordo com especificações que queremos atingir. Por exemplo, um grande desafio hoje em dia é a detecção de planetas em torno de outras estrelas, os chamados exoplanetas, em particular planetas parecidos com a Terra. São planetas sólidos em uma região de habitabilidade onde é possível existir água líquida, nas cercanias de uma estrela. Um dos instrumentos do GMT permitirá medir velocidades radiais de estrelas a centenas de anos-luz com precisão de centímetros por segundo. Isso é de cair o queixo e é necessário para se poder detectar esse tipo de objeto. As tecnologias envolvidas são tremendas e o fato de poder participar desses projetos possibilita não só conhecer essas tecnologias como contribuir para o seu desenvolvimento e essa é uma das grandes motivações que temos em participar desses desenvolvimentos instrumentais.
FCW Cultura Científica – Isso faz com que antes mesmo de o GMT entrar em funcionamento – de ter a primeira luz, como se diz –, já se desenvolveu toda uma tecnologia inclusive aqui no Brasil.
Laerte Sodré Jr. – Não tenha dúvida, ainda mais porque antes da própria construção do instrumento há todo um processo de avaliação do que se está fazendo. Temos, por exemplo, o PDR [project design review], de revisões que o projeto tem que passar com graus de detalhamento variados e o instrumento somente será construído quando estiver com todos os problemas pensados e resolvidos. Isso cria uma capacitação incrível. Voltando à parte de óptica adaptativa, que é a nossa joia mais recente, agora poderemos contribuir com outros grupos no Brasil para implementar esse tipo de tecnologia em telescópios, que é uma capacidade de grande interesse para outros grupos de pesquisa no país. Os recursos que obtemos da Fapesp são essencialmente para financiar engenheiros e astrônomos no desenvolvimento de instrumentação para o telescópio GMT. Há vários instrumentos sendo desenvolvidos neste momento e estamos participando de alguns deles e até mesmo liderando, como em engenharia de sistemas.
FCW Cultura Científica – Em relação ao tempo de observação do GMT, já está definido quanto o Brasil terá?
Laerte Sodré Jr. – O tempo de observação está diretamente relacionado ao investimento feito pelas instituições que integram o consórcio e há ainda alguns pontos importantes a definir com relação ao financiamento. O custo total é difícil de avaliar, mas digamos que sejam US$ 2 bilhões, é dessa ordem de grandeza. Astronomia é big science, principalmente esse tipo de astronomia. A Fapesp contribuiu até o momento com US$ 50 milhões, o que é uma quantia fantástica para o Brasil. Esse montante, considerando os parceiros atuais, equivaleria a cerca de 5% do tempo de telescópio. Mas o projeto precisa de mais parceiros e de mais financiamento, principalmente precisa do apoio da National Science Foundation, porque sem isso será muito difícil atingir a totalidade de recursos necessários. A decisão da NSF implica que uma certa fração do tempo, possivelmente metade do tempo do telescópio – tudo isso ainda será negociado – será de tempo aberto. Tempo aberto significa que qualquer pesquisador dos Estados Unidos ou de outro país poderá pedir tempo de telescópio de forma competitiva. O Brasil, que até o momento é só São Paulo, mas estamos querendo ampliar isso, terá uma certa fração de tempo cativo, que no momento seria da ordem de 5%, mas com a entrada da NSF pode diminuir um pouco. Não vai diminuir proporcionalmente porque somos fundadores do projeto, o que nos dá garantia de que teremos uma uma fração razoável de tempo, mas ainda não dá para saber exatamente quanto será, porque vai envolver negociação com a própria NSF.
FCW Cultura Científica – Com relação às grandes questões em astronomia, o que esses novos e grandes projetos como o GMT permitirão investigar?
Laerte Sodré Jr. – A astronomia atual, como a astronomia em qualquer época, é cheia de mistérios. A gente acha que sabe das coisas mas na realidade tem muito – e eu diria até que a maior parte – que desconhecemos e muito do que sabemos também é duvidoso. Começando, por exemplo, pelas grandes escalas, a cosmologia. O Big Bang, o modelo mais adotado para descrever a origem e a evolução do universo, em sua versão atual é chamado de Lambda-CDM, lambda porque é o termo usado para uma quantidade física que chamamos de constante cosmológica, e CDM é a sigla para Cold Dark Matter, matéria escura fria. Esse modelo tem duas componentes, um componente de energia escura, associada ao lambda, e um componente de matéria escura, associada ao CDM. Esses dois componentes são dominantes e correspondem a cerca de 95% de todo o universo. A matéria ordinária, essa que conhecemos, que é a matéria bariônica, corresponde a apenas 5% do total. O problema é que não temos a menor ideia do que seja matéria escura e energia escura e essa é uma dúvida até existencial. Quando comecei a estudar física, nos anos 1970, a gente aprendia que o universo era formado por átomos, ou seja, prótons, nêutrons, elétrons e depois vieram os quarks. Hoje, o cenário é bem diferente. Sabemos que a matéria conhecida não é dominante e não temos ideia sobre o que, de fato, constitui o corpo do universo. Investigar isso é fundamental e deve ser feito tanto pelo GMT quanto por outros projetos. Tentar descobrir a natureza da energia escura e da matéria escura é muito importante e vai envolver observações em toda a escala de redshift, de idades e de distâncias, porque tudo isso, de certo modo, é equivalente quando falamos em astronomia. Quer dizer, se eu observo um objeto em um alto redshift, estou vendo como ele era no passado e ele estará também a uma distância muito grande, então é por isso que esses fatores são de certo modo equivalentes. Vamos ter que estudar objetos de vários tipos, em várias escalas de distâncias, para conseguir abordar essas grandes questões cosmológicas. Há muitos fenômenos que ainda não conseguimos entender. Sabemos que as galáxias começaram a se formar quando o universo era muito jovem, com poucos milhões de anos, e que elas foram se juntando umas com as outras, formando galáxias maiores. Ocorreu uma série de fenômenos internos que ajudaram ou atrapalharam a formação de estrelas e a formação de estrelas começou e atingiu o máximo quando o universo tinha de um a três bilhões de anos de idade e de lá para cá vem diminuindo. Por que? Esta é uma das questões que queremos abordar com os novos telescópios. Para isso, temos que investigar muitos tópicos diferentes, por exemplo, a composição química. A maior parte dos elementos pesados é formada no interior das estrelas e, ao estudar a química das nuvens, a química das estrelas, a composição química das galáxias, podemos fazer inferências sobre como foi o processo de formação estelar. Essa é uma área chave para estudos com os grandes telescópios.
FCW Cultura Científica – Outro objetivo importante é o estudo de exoplanetas, com a busca por vida fora da Terra.
Laerte Sodré Jr. – Hoje, conhecemos milhares de planetas em torno de outras estrelas. Temos descoberto planetas com propriedades das mais exóticas, desde planetas onde chove ferro até outros sem atmosfera. Um dos maiores projetos da astronomia é a busca por vida fora da terra, principalmente a busca da vida em outros sistemas planetários, em torno de outras estrelas. Pessoalmente, estou confiante de que isso será conseguido em breve, digo isso porque quem procura acha e estamos procurando avidamente por objetos desse tipo. Isso, é claro, não é trivial, principalmente porque não temos ideia do quanto é comum a vida no universo. Será que a vida, principalmente a vida inteligente, é algo raro ou mesmo único, como diz o paradoxo de Fermi, ideia que também está na nova série O Problema dos 3 Corpos? As sondas que serão enviadas nos próximos anos para as luas de Júpiter e Saturno têm muitas condições de encontrar evidências de vida, porque a química que ocorre nesses planetas, nessas luas do Sistema Solar, pode gerar moléculas suficientemente complexas que evoluam para sistemas vivos. Então, esse é dos grandes desafios, encontrar vida em outro planeta, e, certamente, uma descoberta desse tipo terá um impacto cultural para a sociedade humana nem um pouco desprezível. Aliás, a astronomia é uma ciência que tem um profundo impacto na cultura humana, seja a própria existência dos ritmos da natureza, dia e noite, as estações do ano ou as maravilhas do céu, como estrelas, cometas e eclipses. Os fenômenos celestes tinham um impacto até emocional sobre as pessoas que durou milhares de anos e tudo isso acabou engendrando o próprio desenvolvimento da ciência, desde a Babilônia e o Egito antigo, com os primeiros registros de observação do céu, ou tabletes mesopotâmicos com listas de eclipses. Eu sempre gosto de apontar esse aspecto cultural da astronomia.
FCW Cultura Científica – Poderia falar sobre os novos projetos de levantamento e mapeamento do qual o senhor faz parte?
Laerte Sodré Jr. – Os projetos como o J-PAS [Javalambre Physics of the Accelerating Universe Astrophysical Survey] são o que chamamos de levantamentos fotométricos. Há várias formas de observar o céu, das quais as principais são por fotometria e por espectroscopia. Com fotometria, observamos a luz em intervalos grandes de comprimento de onda, por exemplo, quando eu pego um filtro e o coloco na minha frente, se o filtro é azul ele absorve tudo que não é o azul e deixa passar a luz naquele comprimento de onda. Para cobrir o espectro óptico, precisamos usar vários filtros. Outra opção é fazer espectroscopia, onde observamos uma região do espectro com uma resolução muito maior. É quando, por exemplo, a luz é decomposta em um prisma. O que se obtém é justamente um espectro e daí percebemos características desse espectro associadas a certos elementos químicos. É esse tipo de análise que permite determinar a composição química de estrelas e de outros objetos no universo. O J-PAS compreende dois levantamentos, o próprio J-PAS, com 56 filtros, e o J-PLUS, com 12 filtros. A ideia do projeto começou por volta de 2008, proposta por colegas da Espanha. Nós nos associamos com outros colegas no Brasil, fizemos uma proposta de financiamento para a Fapesp e conseguimos participar ativamente na construção da câmera do projeto. O J-PAS está sendo instalado na Serra de Javalambre, na Espanha, uma das regiões mais escuras da Europa, que permite observar o céu com uma abertura muito grande, de dois graus, enquanto que em um telescópio como o Gemini observamos somente 6 minutos de arco. Antes não era possível fazer telescópios capazes de observar um campo tão grande, porque isso envolve lentes corretoras de grande porte e não havia tecnologia para isso. Ao mesmo tempo em que têm uma área coletora muito grande, precisamos de detectores muito grandes. Os detectores principais que usamos para esse tipo de projeto são CCD, semelhantes aos que encontramos nos nossos celulares, mas muito maiores. Construímos um mosaico desses CCDs. No caso da JPCam, que é a câmera do JST250, o telescópio do J-PAS, são 14 CCDs de grande formato, cada um com mais de 1 megapixel, o que torna o mosaico o maior do tipo em operação no mundo. O projeto S-PLUS (Southern Photometric Local Universe Survey) é um primo do J-PLUS e é conduzido a partir de um telescópio de 80 centímetros em Cerro Tololo, no Chile. Ele é coordenado pela minha colega do IAG, Claudia Mendes de Oliveira, e está fazendo imageamento do céu do hemisfério sul em 12 filtros. Tenho vários alunos trabalhando com dados coletados por este projeto.
FCW Cultura Científica – Com relação à ciência, o que o J-PAS permite fazer?
Laerte Sodré Jr. – Fazer fotometria é muito mais barato do que fazer espectroscopia, em termos de tempo de telescópio, porque você consegue fazer fotometria em 5 minutos enquanto que em espectroscopia precisamos de uma hora, por exemplo. Com fotometria podemos fazer um levantamento do céu muito mais rapidamente do que com espectroscopia. Por que um projeto desse tipo é interessante? Os levantamentos do céu são fundamentais para o estudo do que desconhecemos ou não conhecemos bem, como energia escura, matéria escura ou a distribuição de galáxias. Um dos grandes resultados do modelo Lambda-CDM é que ele explica muito bem a distribuição de galáxias. Ao observarmos a distribuição de galáxias, identificamos um padrão que chamamos de teia cósmica e que é explicado pelo modelo Lambda-CDM. Por outro lado, pequenas variações nesse modelo se traduzem na distribuição de galáxias, o que ressalta a importância do estudo da distribuição em três dimensões, que podem ajudar a entender os diferentes graus de agregação de galáxias bem como prover vínculos sobre a natureza tanto da matéria escura quando de diferentes tipos de matéria escura. Um ponto interessante é o seguinte, para fazer um mapa em 3D da distribuição de galáxias, precisamos saber o redshift, a distância. A distância normalmente é obtida por espectroscopia, porém, como não estamos fazendo espectroscopia, precisamos encontrar a distância usando outro tipo de enfoque. Então, obtemos redshifts fotométricos, quer dizer, a partir da fotometria em várias bandas fazemos uma estimativa do redshift, que pode não ser tão precisa quanto aquela obtida por espectroscopia mas é suficientemente precisa para fazer esse tipo de estudo. Eu em particular, junto com meus alunos e colaboradores, tenho muito interesse nesse tipo de técnica e também estamos usando inteligência artificial. Temos desenvolvido algoritmos de inteligência artificial que, alimentados pela fotometria das galáxias, produzem estimativas de distâncias e, com isso, podemos montar mapas tridimensionais do universo.
FCW Cultura Científica – Para finalizar, poderia falar sobre uma questão que sempre foi muito importante para o senhor e que é uma preocupação do GMT Brazil Office, a divulgação científica?
Laerte Sodré Jr. – Iniciativas para aumentar a cultura científica da população são fundamentais. A ciência recentemente foi inclusive contestada por pessoas que não entendem a importância do trabalho científico. Além disso, em geral o público tem pouco acesso a informações de qualidade sobre ciência. Nós, aqui no IAG-USP, desde a época que eu era estudante e até antes, sempre tivemos preocupação em levar a ciência para o público, realizando muitos projetos com esse objetivo. Um dos nossos projetos atuais é o Telescópios na Escola, que visa ao ensino em ciências utilizando telescópios robóticos para a obtenção de imagens em tempo real. Os telescópios são operados remotamente, não necessitando de conhecimento prévio em astronomia. É importante dizer que a iniciativa não foi minha, mas da Fundação Vitae, que infelizmente não opera mais, mas que foi importante para o desenvolvimento de museus de ciências e de atividades de difusão científica no país até o começo dos anos 2000. Sempre pensamos em formas de permitir que um estudante se interesse por ciência e eu gosto de dizer que a gente aprende a fazer ciência fazendo ciência. Projetos como o Telescópios na Escola e outros procuram justamente permitir que os alunos desenvolvam um pequeno projeto e tenham contato com o método científico, com a forma de pensar dos cientistas, que permite a partir de observações e hipóteses fazer referências. Então, por exemplo, será que aquela estrela que estamos vendo é isolada ou é uma estrela dupla? Qual é a cor daquela estrela, o que significa isso em termos da sua temperatura? Ao fazer esse tipo de estudo, os alunos são motivados a ter maior interesse na ciência e eventualmente podem procurar por cursos de hard science, como a gente diz, não somente astronomia. No GMT Brazil Office, procuramos integrar várias universidades e a Univap é a responsável pela difusão científica. Acabamos de concluir a primeira fase da série de vídeos Fascínio do Universo e estamos começando a segunda fase. A divulgação científica é uma atividade fundamental. O que mais me motiva é a descoberta, a pesquisa, mas eu não consigo ver a pesquisa dissociada da transmissão do conhecimento, porque ninguém quer descobrir as coisas para ficar para si. Queremos descobrir para difundir e acho que nós, particularmente em um país como Brasil, temos obrigação de divulgar, porque isso é necessário para continuar avançando e para motivar os cientistas do futuro.