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Entrevista

Edgar Dutra Zanotto

Coordenador do Laboratório de Materiais Vítreos da UFSCar explica o que é o vidro ("nem sólido e nem líquido") e como algo usado há milhares de anos pode se transformar em um dos materiais mais promissores para o futuro, com uso nos mais diversos setores e aplicações, da eletrônica à construção, de utensílios domésticos a implantes e próteses no corpo humano

Sobre

Professor titular de Engenharia de Materiais da UFSCar, onde coordena o Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV), que implantou em 1977. É diretor do Centro de Pesquisa, Tecnologia e Educação em Materiais Vítreos (CeRTEV), presidente do Conselho Curador do ParqTec São Carlos, diretor e conselheiro emérito da Associação Brasileira de Cerâmica. É conselheiro do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, do Instituto Serrapilheira e do FunGlass Institute Europe. É pesquisador 1A do CNPq.

Graduou-se em Engenharia de Materiais na UFSCar (1976), concluiu o mestrado em Física Aplicada e Ciência dos Materiais no Instituto de Física e Química de São Carlos da USP (1978) e o doutorado em Tecnologia de Vidros na Universidade de Sheffield na Inglaterra (1982). Foi professor visitante no Departamento de Ciência e Engenharia de Materiais da Universidade do Arizona, na Universidade da Flórida Central e na Universidade Livre de Bruxelas.

Entre as dezenas de prêmios e honrarias que recebeu estão alguns dos mais importantes na área de vidros (Zachariasen Award em 1991, Vittorio Gottardi Prize em 1993 e G.W. Morey Award em 2012), o TWAS Engineering Prize (2010), a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico (2010) e o Prêmio Almirante Álvaro Alberto (2012), concedido pelo CNPq com apoio da Marinha do Brasil e da Fundação Conrado Wessel.

FCW Cultura Científica – Um material aparentemente tão comum e usado há milhares de anos, o vidro continua surpreendendo e até mesmo confundindo. O senhor mesmo publicou um artigo muito comentado no qual propõe uma nova definição para o vidro.

Edgar Dutra Zanotto – Esse artigo, publicado em 2017, teve origem no ano anterior. Foi quando me convidaram para dar uma palestra muito importante, a Turner Memorial Lecture (banquet talk) na Universidade de Sheffield, no Reino Unido, em um evento que comemorou os 100 anos da Society of Glass Technology. Na palestra, abordei vários tópicos e no final aproveitei a oportunidade para dizer o que achava que era o vidro. Há dezenas de definições na literatura e fiz uma nova proposta. Depois que terminei, o Arun Varshneya, pesquisador famoso na área, levantou-se e disse que discordava de partes da definição. Como era um ambiente descontraído, respondi que não daria para discutir muito naquele momento, do contrário ninguém iria jantar. Sugeri continuar a discussão por e-mail. Foi o que fizemos por um tempo, até que ele se cansou e disse “Zanotto, eu continuo discordando de você, mas acho o debate tão importante que vou colocar o aluno mais brilhante que já tive para continuar, o John Mauro”. O Mauro, que fez o doutorado com o Arun, é uma das referências na área. Foi ele quem inventou o Gorilla Glass, o vidro resistente dos celulares. Como o Arun havia desistido da discussão, decidi escrever o rascunho de um artigo sobre o assunto. Isso foi no dia 23 de dezembro de 2016, quase Natal. Mandei o texto para o Mauro e ele respondeu duas horas depois dizendo que havia adorado. Fez algumas observações e continuamos a trocar mensagens. Eu mandava uma versão, ele devolvia outra, isso nos dias 24, 25 e 26, fomos até depois do Ano Novo nessa troca. Como ele havia contribuído o suficiente para ser coautor, decidimos submeter o artigo ao Journal of Non-Crystalline Solids.



FCW Cultura Científica – O senhor é um dos editores desta revista. Isso não facilitou a publicação do trabalho?

Edgar Dutra Zanotto – O Journal of Non-Crystalline Solids é um dos mais importantes periódicos da área. Existe desde 1968 e é publicado pela Elsevier. Na época, éramos três editores e quando submeti o artigo outro editor o recebeu. Ele enviou o manuscrito a dois revisores e um deles recusou, discordou das ideias que apresentamos. Incluímos algumas sugestões, revisamos e o submetemos novamente. Recebemos o manuscrito de volta com novas críticas. Ficamos nesse impasse por um tempo até que o revisor se convenceu e o artigo foi aceito. Então, mesmo eu sendo um dos editores, isso não fez a menor diferença, foi uma batalha conseguir publicar. Mas quando o artigo saiu, em setembro de 2017, em pouco tempo se tornou o mais baixado do Journal of Non-Crystalline Solids naquele ano. No ano seguinte, tornou-se o artigo com mais downloads dentre os mais de 30 mil artigos da história do periódico. 


FCW Cultura Científica – Então, o que é o vidro? 

Edgar Dutra Zanotto – O vidro é um estado da matéria fora do equilíbrio termodinâmico – em que os equilíbrios térmico, químico e mecânico ocorrem simultaneamente – e não cristalino. Os vidros parecem sólidos em uma curta escala de tempo, mas relaxam continuamente em direção ao estado líquido. Os vidros são materiais caracterizados por vários “não”. Eles não cristalinos, com isso todo mundo concorda, porque a estrutura é desorganizada, e não atingiu o equilíbrio termodinâmico. São líquidos que foram “congelados” temporariamente sem se cristalizar (isto é, vitrificaram-se). Se você resfriar líquidos viscosos formadores de vidro, eles “congelam” numa estrutura líquida desorganizada (amorfa), mas esse é um estado temporário porque eles relaxam continuamente. Isso é parte da definição do vidro: relaxam continuamente tentando atingir o equilíbrio. Dependendo da temperatura e do tempo, acabam se cristalizando. Esse é o destino de todos os vidros: cristalizar. É quanto eles se tornam sólidos. Os sólidos  verdadeiros são cristalinos (têm os átomos arranjados ordenadamente no espaço em posições de equilíbrio). Quanto tempo isso leva? Depende da temperatura e da composição. Se estiver na temperatura ambiente vai levar um zilhão de anos, mas se aquecer eles cristalizam-se rapidamente. Tudo depende da energia térmica fornecida. Resumindo, os vidros não são cristalinos, estão fora do equilíbrio, relaxam continuamente, a estrutura deles é igual à estrutura do líquido isoquímico e no fim da vida eles se cristalizam, tornam-se sólidos. É importante destacar que essa definição não é a definitiva e também não é a única. A ciência está sempre evoluindo e novas definições provavelmente surgirão. O Arun Varshneya, que no final se convenceu e é muito engraçado, diz que “os vidros são transgêneros”, eles não se decidem se são sólidos ou líquidos. Eles têm a estrutura de líquidos, mas parecem sólidos. Eles quebram, ressoam, cortam, mas isso tudo depende do tempo. Num tempo relativamente curto, eles parecem sólidos, mas se você esperar, eles vão relaxar e fluir como qualquer líquido. Então, os vidros são materiais intermediários, nem sólidos e nem líquidos. Podemos chamar de “o estado vítreo da matéria”. Um estado intermediário entre líquidos e sólidos. Um estado de transição.


FCW Cultura Científica – O vidro é usado há pelo menos 3 mil anos e é difícil imaginar viver sem esse material. Mas o vidro não é um, são muitos. Há milhares de tipos de vidros, com formulações diferentes. 

Edgar Dutra Zanotto – Quando me formei, em 1976, e construímos o LaMaV [Laboratório de Materiais Vítreos, na UFSCar], que foi o primeiro laboratório de pesquisa dedicado exclusivamente a vidros no Brasil, o vidro era uma commodity, um material considerado sem graça. Era usado em janelas, garrafas e utensílios domésticos e decorativos. Mas, naquela mesma década, entrou em cena algo que mudaria tudo: a fibra óptica. Não tem como pensar no mundo atual sem as fibras ópticas, que permitem as comunicações de alta velocidade e a troca gigantesca de dados que ocorre a cada segundo. Hoje, há mais de 4 bilhões de quilômetros de fibras ópticas instaladas neste planeta, daria para ir e voltar à Lua várias vezes. E as fibras ópticas não estão presentes somente nos grandes centros urbanos. Aqui mesmo em São Carlos, na minha chácara, que fica a uns 20 quilômetros do centro da cidade, temos fibras ópticas. Depois das fibras, apareceram vidros para eletrônica, biovidros, vidros bactericidas, vidros para odontologia, vidros fotocromáticos, vidros temperados quimicamente ou termicamente, filtros diversos, vidros para baterias e vários outros. A evolução da ciência e da engenharia de materiais permitiu que o vidro experimentasse uma explosão de aplicações. Por exemplo, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Química de 2023, Alexei Ekimov, conseguiu criar efeitos quânticos em vidros coloridos. A cor vinha de nanopartículas de cloreto de cobre e Ekimov demonstrou que o tamanho das partículas afetava a cor do vidro por meio de efeitos quânticos. O vidro pode inclusive resolver o problema de armazenamento de dados no futuro, com uma solução sustentável e extremamente durável, como busca o Projeto Sílica conduzido pelo grupo Elire com a Microsoft. Uma única pequena placa de vidro pode conter vários terabytes de dados e durar mais de 10 mil anos. Atualmente, temos cerca de 400 mil composições de vidros divulgadas e deve ter mais outro tanto não divulgado, desenvolvido por empresas. Deve existir em torno de 1 milhão de vidros de diferentes composições. E aí já estamos também incluindo os materiais vitrocerâmicos.



FCW Cultura Científica – O que são os materiais vitrocerâmicos?

Edgar Dutra Zanotto – Como já comentei, o vidro tem uma tendência a se cristalizar. Se esperarmos um certo tempo, dependendo da temperatura, ele cristaliza. Acontece que cristaliza descontroladamente. Logo que comecei a pesquisar esse material, fiz um experimento simples. Peguei uma garrafa, a quebrei, coloquei uns pedaços no forno a uns 700 graus e eles logo se cristalizaram, mas descontroladamente. Entortou tudo, um pedaço cristalizou, outro não, o resultado foi inútil. Por outro lado, os vitrocerâmicos são materiais policristalinos que resultam da cristalização controlada de certos vidros. Para obter um material vitrocerâmico usamos agentes nucleantes ou catalisadores que induzem a cristalização no interior da peça. O objetivo é ter uma cristalização controlada uniformemente no interior, de modo que ela seja induzida simultaneamente em todo o volume, assim o objeto não se deforma. Podemos, por exemplo, manter a forma de uma garrafa após o tratamento térmico, só que agora é uma garrafa cristalina, com propriedades, em geral, superiores às do vidro mãe. A dureza, a resistência mecânica, a resistência química e a maioria das demais propriedades melhora quando se cristaliza um vidro de forma controlada. Então, vitrocerâmicos resultam de vidros especiais submetidos a um determinado tratamento térmico, que foram cristalizados controladamente para melhorar determinadas propriedades. 


FCW Cultura Científica – Em que os materiais vitrocerâmicos são usados?

Edgar Dutra Zanotto – Um exemplo bem conhecido são as placas de cooktops, aqueles fogões mais modernos que não usam gás e aquecem os alimentos por radiação ou indução transformando eletricidade em calor. Certos vitrocerâmicos têm coeficiente de expansão térmica zero, podendo ser aquecidos e resfriados rapidamente sem se romper. Se aquecermos bastante e resfriarmos rapidamente um vidro comum ou qualquer outro material transparente, ele se trinca devido às tensões térmicas. Já certos materiais vitrocerâmicos usados nos cooktops não se expandem; são os únicos materiais que não se expandem com o aquecimento. É por isso que eles são usados em placas de fogões. Outra vantagem é a sua alta durabilidade química, não mancham, é muito fácil limpar. Nos Estados Unidos, Europa e Ásia, onde não é comum a presença da auxiliar doméstica, esse tipo de fogão facilita a vida das pessoas. Outro exemplo do uso de materiais vitrocerâmicos está na fachada de prédios, como no Shopping JK Iguatemi, em São Paulo. Por que eles usaram? Primeiro porque a resistência mecânica é muito maior que a do vidro, é um material resistente, muito difícil de quebrar. Outro ponto essencial é a aparência, imita mármore ou granito. O material vitrocerâmico pode ser produzido para ter as cores, as texturas e os veios do mármore, pode ficar da forma que o arquiteto imaginar. E podem ser completamente brancos, pretos ou marrons, o que não ocorre com as rochas naturais. Elês também não têm poros, quer dizer, não sujam tanto como mármore e granito. Ali não entra poeira, óleo, umidade ou fungos. Enfim, a versatilidade é muito maior que das pedras naturais. Eles também são empregados como substratos de discos rígidos, espelhos de telescópios gigantes, peças dielétricas usináveis, em medicina, odontologia etc.


FCW Cultura Científica – Os vitrocerâmicos têm enorme potencial de uso também em aplicações em saúde, como pesquisas feitas no LaMaV têm demonstrado. 

Edgar Dutra Zanotto – Têm um potencial ilimitado. Um exemplo está em materiais dentários, com aplicações fantásticas em um mercado bilionário. Hoje, conseguimos fabricar vitrocerâmicos idênticos aos dentes, com os mais variados tipos de cores, do superbranco ao amarelo de um fumante e todas as tonalidades intermediárias. Os dentes vitrocerâmicos também são usináveis, um dentista ou protético experiente podem deixá-los no formato que quiserem e apresentam alta resistência à fratura. Eles são translúcidos, são extremamente resistentes e não mancham porque têm altíssima durabilidade química. Em resumo, são materiais ultra-adequados para próteses dentárias. Há também inúmeros exemplos de aplicação de biovidros, tais como ossículos do ouvido médio em implantes oculares. Neste caso, o material vitrocerâmico devolve o volume perdido do globo ocular de pessoas portadoras de doenças como tumor, trauma ou glaucoma. O implante de biovidro é bactericida. Com  polímeros, muitas vezes ocorre infecção ou rejeição na operação. Qualquer cirurgia está sujeita a infecção, depende do paciente, do médico, do hospital, do sistema imune do paciente no momento da cirurgia, mas o biovidro é altamente bactericida. Aliás, também existem biovitrocerâmicos, biossilicato cristalizado a partir de um vidro. Também, sendo bioativo, se a pessoa tiver na parte de trás do olho os nervos e cartilagens ainda sadios, o material se une àqueles nervos e cartilagens. Se a região nervosa estiver razoavelmente intacta, como é o caso da mulher que foi entrevistada na reportagem do Jornal Nacional sobre a nossa pesquisa, quando o olho sadio se move, o outro com implante acompanha. Evita-se assim aquele episódio de olho de vidro morto, que não se mexe. Essa é uma enorme vantagem. O implante biovitrocerâmico cola-se biologicamente à parte nervosa e às cartilagens e ele se move como se a pessoa ainda tivesse os dois olhos sadios. É claro que a pessoa não enxerga com o implante, mas este se move o que aumenta sobremaneira a autoestima. As outras pessoas não percebem que você tem um olho artificial.


FCW Cultura Científica – Esses bons resultados de pesquisa não terminam nos laboratórios, porque um dos objetivos do LaMaV e do CeRTEV é fazer com que as invenções cheguem ao mercado e ao público geral tornando-se inovações.

Edgar Dutra Zanotto – Sim, esse é o nosso braço tecnológico. Eu tenho um braço muito científico, fiz física também, adoro a ciência, entender a causa dos fenômenos físico-químicos em materiais, explicá-los e, se possível, prevê-los! Mas também adoro a parte tecnológica. Tenho um pé na física e outro na engenharia, conforme enfatizei em entrevista à revista Pesquisa Fapesp há alguns anos. Da mesma forma, temos alunos cientistas, que querem entender a causa das coisas, compreender fenômenos, e outros que preferem desenvolver produtos ou processos. Essa parte tecnológica somente tem sentido quando interagimos com a indústria, quando temos parceria ou financiamento de empresas, quando desenvolvemos algo para uma empresa que vai se encarregar de colocar o invento no mercado. Em alguns casos, as empresas não existem, então aquilo que a gente inventa, como os implantes oculares, para colocar no mercado precisamos de novas empresas, e é aí que entram as spin-off criadas por ex-alunos que passaram por nossos laboratórios. 


FCW Cultura Científica – Um exemplo bem sucedido de spin-off do LaMaV e do Departamento de Engenharia de Materiais da UFSCar é a Vetra, que desenvolve produtos baseados em biovidro para aplicações em saúde. 

Edgar Dutra Zanotto – Como aqui no Brasil a universidade não pode colocar nada no mercado, as empresas spin-off são imprescindíveis. A Vetra é um exemplo do qual temos muito orgulho, criada por ex-alunos, Marina Trevelin Souza, Murilo Camuri Crovace e Clever Ricardo Chinaglia. Mas é bem difícil, eles lutam para inserir no mercado os produtos que desenvolvem, porque precisam ter aprovação da Anvisa, o que é extremamente complicado, demorado e com gasto elevado para uma pequena empresa. É preciso investir um longo tempo para realizar os ensaios clínicos de modo a atender as normas vigentes. Um produto na área de saúde não é como, por exemplo, um software, que alguém desenvolve e já pode (praticamente) sair vendendo. Mas a Vetra está bem adiantada e se associou recentemente a uma empresa de porte, a Jacto, cujo fundador, Shunji Nishimura, foi um grande inovador, que também criou uma escola técnica com currículo original de alto nível. Com o apoio da Jacto, a Vetra está investindo em ensaios clínicos, porque não adianta ter realizado apenas determinados testes que permitiram a produção de artigos científicos e patentes; para levar os produtos ao mercado a Anvisa exige muito mais. 



FCW Cultura Científica – Poderia falar sobre o vidro com relação às implicações ambientais e sustentabilidade, porque como o senhor mesmo costuma mencionar em palestras, trata-se de um dos materiais mais recicláveis que existe.

Edgar Dutra Zanotto – Alguns metais e plásticos têm um certo grau de reciclabilidade, mas você não pode reciclá-los indefinidamente porque o peso molecular vai diminuindo. Plásticos são arquitetados artificialmente, têm sempre um catalisador que aumenta o peso molecular do monômero orgânico para virar um polímero. Frequentemente, quando você recicla sem cuidados ultra especiais, o peso molecular diminui e as propriedades se deterioram. O vidro não sofre desse problema, pode ser reciclado sempre. Você pode fundir o material e fazer uma garrafa, fundir novamente e fazer outra, indefinidamente. Mas a reciclagem do vidro ainda enfrenta um grande problema que é a coleta seletiva de material. No Brasil, ainda há pouca coleta e quando existe vem muitos materiais e entulhos misturados. Em 2022, passei um tempo na Bélgica como professor visitante na Universidade Livre de Bruxelas. Fiquei no centro da cidade e tomava diariamente o metrô para ir à universidade. Ali há pontos de coleta a cada 500 metros, mais ou menos, ao longo da linha do metrô. E, no caso do vidro, quando vão tomar o metrô, as pessoas já vêm com uma sacolinha e colocam as embalagens de vidro marrom, verde ou incolor em coletores separados. Aqui no Brasil, quando há coleta de vidro, as cores são misturadas. O resultado é que as empresas que usam vidro reciclado no Brasil reclamam, com razão, que o material coletado vem muito sujo, misturado com metais, tijolos, plásticos ou outros materiais. Ou seja, a empresa que compra o vidro reciclado precisa ter ou usar uma usina de beneficiamento, o que significa mais gastos. Reciclar vidro é ótimo também do ponto de vista da pegada de carbono, porque todo o carbono das matérias-primas contendo CO2, carbonato de sódio e de cálcio, foi liberado na primeira fusão. Da segunda fusão em diante, não tem mais. Há empresas internacionais produzindo 100% de vidro reciclado, mas no Brasil a média na indústria de garrafas é da ordem de 50%. Falta bastante, mas esse percentual mostra que os vidreiros já conseguiram um bom avanço, bem mais do que a maioria dos materiais. 


FCW Cultura Científica – Como é o uso das novas tecnologias de computação na pesquisa e desenvolvimento de vidros e vitrocerâmicos?

Edgar Dutra Zanotto – Um desenvolvimento recente, significativo e fantástico é a aplicação da inteligência artificial. Eu sou entusiasta de primeira linha da computação, pois é algo em que sempre acreditei, tanto que em 1973, minha primeira bolsa, de iniciação científica, foi em computação. Eu não sou especialista, mas gosto e não tenho receio de algoritmos nem de programação. E quando a inteligência artificial começou a ser aplicada na pesquisa em materiais, percebi que os vidros eram provavelmente os materiais mais adequados para desenvolvimento via inteligência artificial. Porque tanto para os materiais policristalinos, sendo a devastadora maioria, como para os semicristalinos, todas as propriedades dependem da composição química e também da microestrutura. É muito difícil treinar os algoritmos de inteligência artificial com materiais policristalinos, porque são muitas variáveis. Você tem que fornecer o tamanho dos cristalitos, a composição deles, a fração volumétrica, a geometria e a propriedade de interesseVocê tem que fornecer a composição química, o ta policristalinos, a composição deles, a fração volumétrica, a sua geometria dos cristalitos e a propriedade de interesse. Com os vidros, como eles não têm microestrutura, são amorfos, basta alimentar os algoritmos escolhidos com a composição química e a propriedade de interesse. Então, podemos usar dados da literatura de milhares de vidros e treinar algoritmos de inteligência artificial para buscar e simular composições com combinações inusuais, desejadas de propriedades. 


FCW Cultura Científica – Vocês estão usando o aprendizado de máquina e redes neurais para simular novas composições?

Edgar Dutra Zanotto – Sim, já publicamos vários trabalhos. Em 2018, publicamos o primeiro artigo com 50 mil composições. Tinha uns três ou quatro artigos anteriores usando 700 ou 800 composições, mas o nosso com 50 mil composições foi inovador, publicado na Acta Materialia, que é um excelente periódico sobre ciência dos materiais, e desde então continuamos com uma média de um artigo por ano. Temos trabalhos com IA focalizando diversos aspectos de vidros, por exemplo, o primeiro artigo publicado sobre o uso de inteligência artificial para o desenho de vidros ópticos.


FCW Cultura Científica – A inteligência artificial e novas ferramentas computacionais permitem ampliar rapidamente o número de formulações conhecidas. Ainda assim, o potencial é praticamente inesgotável. Em um artigo que o senhor publicou em 2004 com o professor Francisco Bezerra Coutinho, vocês calcularam quantas composições de vidros seria possível obter a partir de 80 elementos químicos. O resultado foi astronômico, 10 elevado a 52 tipos diferentes. 

Edgar Dutra Zanotto – Esse artigo com o Coutinho faz me lembrar de outra boa história. O publicamos no Journal of Non-Crystalline Solids, que é o periódico favorito dos “vidreiros”. Na época eu não era editor e o trabalho foi recebido pelo professor Joseph Simmons, que eu conhecia, nos encontramos em alguns congressos. Ele me escreveu perguntando se eu tinha certeza que queria submeter aquele artigo para revisão por pares. Ele achava que seria recusado. Realmente, foi difícil publicar, exigiu muitas idas e vindas com um dos revisores até ter o aceite. Mas após publicado, o artigo era pouco citado. O Coutinho, toda vez que me encontrava, falava que ninguém estava lendo o nosso artigo. Ficou assim até há cerca cinco anos, quando a inteligência artificial entrou em cena na pesquisa de materiais vítreos. Aí explodiram as citações ao artigo. Passou a fazer parte da introdução de trabalhos na área, o 10 elevado e 52 como referência. 


FCW Cultura Científica – Seus alunos devem estar empolgados diante das possibilidades que as novas ferramentas computacionais estão abrindo na pesquisa em materiais. 

Edgar Dutra Zanotto – Eu tenho no momento três ótimos alunos de iniciação científica trabalhando com IA, dois são bolsistas da Fapesp. É uma área fantástica. Mas ainda temos que testar e encontrar algoritmos e estratégias melhores, mais adequados aos trabalhos com vidros. O aprendizado de máquina depende do conjunto de dados existente e se quisermos desenvolver um vidro com propriedades fora do conjunto utilizado no treino o resultado ainda não é bom. As ferramentas disponíveis são excelentes para interpolações, têm grande precisão, mas extrapolações ainda são problemáticas. Nesse sentido, estamos colaborando com o Paulo Orenstein e seus alunos do IMPA [Instituto de Matemática Pura e Aplicada], no desenvolvimento de novos algoritmos e estratégias de treino que permitam melhorar a qualidade das extrapolações. Para dar um exemplo, estamos usamos um conjunto de cerca de 50 mil vidros para um treinamento em que o maior índice de refração é 2,5. Mas se uma determinada empresa quiser produzir lentes miniaturas de um novo vidro com índice de 3,0, que ninguém fez, seria um exemplo de problema que queremos resolver; e já estamos bem adiantados! 







 




Revista FCW Cultura Científica v. 1 n 4 novembro 2023 - janeiro 2024

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