Ricardo Ogando
Astrônomo do Observatório Nacional fala sobre grandes projetos de mapeamento do céu, como Dark Energy Survey e Sloan Digital Sky Survey, que permitem estudar aglomerados e a evolução de galáxias e abrir caminhos para compreender mistérios como energia escura e matéria escura, e destaca a importância da análise de dados nas pesquisas em astronomia
Sobre
Ricardo Lourenço Correia Ogando é tecnologista sênior no Observatório Nacional (ON), onde preside a Comissão do Programa de Iniciação Científica e Tecnológica. É astrônomo e doutor em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
É especializado na formação e evolução de galáxias e aglomerações e membro de projetos de mapeamentos do céu como o Sloan Digital Sky Survey (III e IV) e o Dark Energy Survey, onde é co-coordenador do Grupo de Trabalho de Evolução de Galáxias e Quasares.
Produz textos e vídeos para as redes sociais do ON, além de participar do programa "Ciência no Rádio". Tem experiência com lives no canal do ON no YouTube, com observações e debates sobre astronomia.
FCW Cultura Científica – Como se faz para mapear algo tão vasto como o céu?
Ricardo Ogando – Nos levantamentos ou mapeamentos procuramos cobrir a maior área possível do céu. O que significa isso? A capacidade de observar o céu está ligada a dois fatores principais. O primeiro é o tamanho do telescópio, quanto maior o telescópio maior a capacidade de ele captar luz. Telescópios grandes permitem reduzir o tempo de integração, a exposição, que na fotografia é deixar o obturador aberto, e em um mapeamento precisamos reduzir esse tempo, de modo a fazer muitas imagens e cobrir o céu rapidamente. O segundo fator é o tamanho da área coberta pela câmera, o campo de visão. Juntando esses dois fatores, precisamos de um telescópio grande para observar rapidamente uma região do céu com um campo grande para cobrir rapidamente vastas regiões. E a ideia é ir também mais fundo, literalmente, além de aumentar a área, também a profundidade para ver mais longe, ver objetos cada vez mais distantes, em um volume cada vez maior. Quando aumentamos a exposição podemos ver cada vez mais longe. Outra técnica é fazer várias imagens relativamente curtas de uma mesma região do céu e depois somamos todas elas. Isso tem várias vantagens, porque se fazemos a mesma região do céu várias vezes temos observações espaçadas no tempo e podemos conseguir ver os chamados transientes, que são objetos que se movem e que variam o brilho.
FCW Cultura Científica – Essas sequências de imagens precisam ser feitas em uma mesma noite?
Ricardo Ogando – Não, podemos fazer em uma noite, depois voltar em uma semana. Não dá para fazer a segunda imagem seis meses depois, por causa do movimento da Terra em torno do Sol, mas ao longo de dias ou em algumas semanas podemos voltar a observar uma mesma região. É importante destacar que a astronomia é uma ciência observacional, você só acha quando procura. Tem uma palavra em inglês, serendipity, que significa fazer descobertas felizes ao acaso – se bem que não é bem ao acaso, porque estamos ativamente observando o céu e buscando por padrões – mas algumas vezes temos aquele momento eureca e vemos algo diferente. Pode ser algo que já se conhecia, como asteroides, mas com propriedades diferentes. Por exemplo, um grupo liderado por pesquisadores do Observatório Nacional foi o primeiro no mundo a descobrir anéis em torno de um asteroide, no caso o Cáriclo. Essa descoberta só foi possível porque se observou sistematicamente o maior número de objetos possíveis com uma maneira engenhosa e relativamente rara, a ocultação, quando o asteroide passa em frente a uma estrela e conseguimos medir sua silhueta. Ao estudar a dinâmica de objetos nos confins do Sistema Solar, podemos tentar prever, por exemplo, se existe um nono planeta, que era Plutão mas deixou de ser. Ao observar o movimento de asteroides além da órbita de Netuno, os chamados Objetos Transnetunianos, vemos que eles têm uma distribuição na órbita que indica a presença de uma massa distante que poderia ser um planeta. Enfim, tem gente que diz que sim, tem gente que diz não. É uma das grandes buscas atualmente no Sistema Solar e para isso precisamos observar grandes regiões do céu.
FCW Cultura Científica – Os mapas precisam ser atualizados com que frequência?
Ricardo Ogando – Do ponto de vista da vida das estrelas, para nós elas parecem eternas, então essencialmente as estrelas estão todas lá em seus pontos, exceto quando explodem, no fenômeno da supernova, por exemplo, ou as estrelas variáveis, que ajudaram Edwin Hubble a medir distância de outras galáxias, como Andrômeda. Entretanto, as estrelas têm movimento próprio e conseguimos ver isso naquelas mais próximas depois de bastante tempo. Há levantamentos específicos, chamados de levantamentos astrométricos, que vão tentar entender a posição da estrela no céu para montar um referencial, usando eixos de coordenadas. Mas a questão é que tudo está se movendo, o universo todo está em movimento: a Terra em torno do Sol, o Sol em torno do centro da galáxia e a Via Láctea também se movimentando. É claro que o movimento mais mensurável para nós é o da Terra. O Sol em torno da Via Láctea leva milhões de anos para dar uma volta. De qualquer forma, as estrelas na Via Láctea também se movem, então é por isso que o pessoal busca referências, como, por exemplo, quasares distantes. Já os eventos de explosão, como os de supernovas, são fortuitos, daí a importância de voltar para observar uma mesma região para verificar se algo brilhante surgiu por ali. Por isso tudo, os mapeamentos nunca terminam, pois podemos descobrir algo novo sobre algo conhecido, sejam novos tipos de asteroides, asteroides em lugares diferentes ou novos planetas. O universo é enorme e nem a imaginação mais incrível consegue imaginar tudo o que há nele.
FCW Cultura Científica – Por exemplo?
Ricardo Ogando – Um bom exemplo é a matéria escura. Ninguém jamais fez um modelo teórico, previu ou falou que existia essa espécie de matéria “fantasma”, que não emite luz, que é invisível e que não é interagente, pelo menos achamos isso, ou seja, ela atravessa as coisas, mais uma vez como um fantasma. Como sabemos que ela existe? Sabemos porque ela tem massa, tem presença gravitacional, afeta o movimento das estrelas em uma galáxia e afeta o movimento das galáxias em um aglomerado. Quando calculamos a massa de um sistema a partir do que enxergamos e de sua dinâmica, quando calculamos a velocidade e a energia cinética e tentamos comparar com a energia potencial gravitacional e vemos que o resultado não bate, é porque há uma outra massa ali que não estamos vendo. Outro exemplo é a energia escura, que também ninguém imaginou que existisse, mas ao observar características do universo se desconfiava que havia algo diferente. Quando se faz observações de supernova, de um tipo específico de supernova, o tipo Ia, vemos que ela tem um brilho padrão que conseguimos usar para calcular a distância em que ela se encontra. Mas, ao observar essas supernovas, viu-se que elas tinham brilho mais fraco do que o esperado, ou seja, estavam mais longe do que se imaginava. O que isso significa? Significa que o universo está em expansão acelerada. O conceito de expansão do universo é conhecido há 100 anos, desde Edwin Hubble, que concluiu que quanto mais longe está uma galáxia maior é a velocidade de afastamento dela. Em 1998, dois grupos de astrônomos descobriram que o universo não só estava em expansão como em expansão acelerada e o motivo é a chamada energia escura. A matéria ordinária, que conhecemos e que compõe eu, você, a mesa, a Terra, é algo que representa aproximadamente apenas 5% do universo. Os outros 95% são energia escura e matéria escura.
FCW Cultura Científica – Essas descobertas levaram à iniciativas de mapeamento como o Dark Energy Survey e o Sloan Digital Sky Survey, do qual você participou. Poderia falar sobre esses projetos?
Ricardo Ogando – Sim, essas descobertas levaram à criação de novos levantamentos digitais, como o Dark Energy Survey (DES), o levantamento da energia escura, que foi liderado pelos Estados Unidos e teve participação de grupos de diversos países, como o Brasil. Quando se descobriu a existência da energia escura, que é o grande mistério atual da cosmologia , foi formada uma força tarefa para propor instrumentos que permitissem tentar entendê-la em diferentes estágios. O DES teve a primeira luz em 2012 e terminou de observar em 2019, mas as análises continuam. Antes dele teve o Sloan Digital Sky Survey, que começou em 2000, um levantamento incrível que cobriu boa parte do hemisfério Norte, com um telescópio de 2,5 metros dentro do estágio 2 com diferentes experimentos. O Dark Energy Survey é um experimento do que se chama estágio 3. Usa um telescópio de 4 metros no Chile, um telescópio da década de 1970 que foi todo reformado, tem uma câmera nova de 570 megapixels e um campo de visão equivalente a 14 Luas cheias no céu. Tem bastante resolução e cobre uma área bastante grande. Foi uma câmera construída para fazer mapeamento do céu, diferente de telescópios que têm campo pequeno e são usados para estudar coisas específicas. Desde o início do DES, grupos de vários institutos no Brasil se reuniram em uma colaboração para participar do projeto. Eu entrei antes de começarem as observações, pois tem todo um processo de preparação usando simulações, desenvolvimento daquilo que será usado na prática, de sistemas de controle de qualidade, além da análise científica. Nosso grupo no ON tem trabalhado bastante com o DES no estudo de aglomerados de galáxias, a luz de estrelas desgarradas desses objetos, além da evolução de galáxias nesses ambientes.
FCW Cultura Científica – Depois do Sloan e do DES, o que teremos em novidade em mapeamento do céu?
Ricardo Ogando – O próximo estágio nessa história é o Observatório Vera Rubin. Isso com relação a mapeamentos fotométricos, que fazem imagens do céu, pois há outros tipos de mapeamento. O Vera Rubin terá um espelho de 8,4 metros de abertura, bem maior do que os anteriores. Será um telescópio novo e moderno, com uma câmera de 3,2 gigapixels e um campo de visão que cobre 40 Luas cheias. Será capaz de cobrir o céu inteiro a cada três dias com uma profundidade incrível. Ele vai fazer praticamente um filme em alta definição do céu.
FCW Cultura Científica – Poderia dar um exemplo do que esses novos equipamentos permitem estudar?
Ricardo Ogando – Uma das propriedades mais interessantes e que só recentemente está sendo mais explorada, justamente por causa da melhoria nas capacidades instrumentais, é a luz difusa das estrelas desgarradas em aglomerados de galáxias. Um aglomerado de galáxias é parte da teia cósmica. As galáxias vão se distribuindo em filamentos e há alguns nós nesses filamentos onde se encontram mais galáxias. A gravidade é uma força de longa distância que mantém tudo preso: nós aqui na Terra, a Terra em torno do Sol, o Sol em torno do centro da Via Láctea e a Via Láctea no Grupo Local. A gravidade mantém uma estrutura e no meio desses nós e filamentos há grandes vazios e tudo isso é parte da estrutura em grande escala do universo. Essas regiões onde as galáxias se aglomeram são especiais por várias razões, elas podem se chocar, podem ter processo de fusão ou passar uma perto da outra, se deformando no processo. Esse processo produz estrelas soltas, rogue stars, que não fazem parte de nenhuma galáxia do aglomerado, mas há uma quantidade bastante grande dessas estrelas, que vai gerar um halo de luz difusa. O nome técnico é luz intraglomerado. É muita estrela, mas ainda assim é uma luz fraca que observamos, porque a densidade é baixa. Quando se tem um monte de estrelas concentradas em uma galáxia, distribuídas no volume de um aglomerado muito maior, a densidade de estrelas é muito baixa e, consequentemente, o brilho, tornando muito grande o desafio de observar essa luz difusa.
FCW Cultura Científica – Poderia dar um exemplo do que esses novos equipamentos permite estudar?
Ricardo Ogando – Tem uma série de estudos, no Brasil inclusive. Um aluno de doutorado meu, Hillysson Sampaio dos Santos, usou o que na época era a maior amostra, obtida com o DES, da luz difusa. Foi um trabalho em colaboração com a Yuanyuan Zhang, que estava no Fermilab, em Illinois, e hoje está no NOIR Lab, no Arizona. Neste trabalho com a luz difusa, a ideia era conseguir mapear, junto com a matéria escura também, a massa de um aglomerado, então se poderia fazer uma série de inferências sobre a massa do aglomerado e sobre o processo de formação dele. Como é que isso ocorreu, se teve fusão ou não, se as fusões aconteceram mais no centro do que na região externa.
FCW Cultura Científica – Quais são os focos de estudo em um projeto de mapeamento como o Dark Energy Survey?
Ricardo Ogando – Esses grandes levantamentos costumam ter vários grupos de trabalhos, focados em diferentes áreas. No DES, os principais alvos, justamente pelo foco na energia escura, são supernova, aglomerado de galáxias e estrutura em grande escala, que vai medir a chamada oscilação acústica de bárions. Há também o estudo de lentes gravitacionais fracas, que é uma das principais previsões da relatividade geral de Einstein, onde a luz de galáxias distantes passa por uma grande massa, como um aglomerado, e há deformações sutis que conseguimos medir de forma estatística. Se olharmos para uma galáxia há um cisalhamento na forma das imagens e não temos ideia do que está acontecendo, porque não sabemos qual é a forma original da galáxia ou como ela está sendo deformada. Então, esses grupos principais do DES abordam várias maneiras de entender como a energia escura atua nessa formação da estrutura em grande escala. Quando pensamos na quantidade de massa distribuída no universo, vemos que há uma disputa entre energia escura e gravidade. A energia escura está expandindo de forma acelerada o universo e a gravidade vai na direção contrária. Por conta disso, olhar o que está se formando através da gravidade permite dizer o quanto a energia escura influenciou essa formação.
FCW Cultura Científica – Apesar de o objetivo principal do Dark Energy Survey ser o estudo da energia escura, o mapeamento resultante permite fazer outros tipos de estudos?
Ricardo Ogando – Podemos realizar muitos outros trabalhos com esses dados. Podemos estudar colisões de buracos negros e de estrelas de nêutrons que geraram sinais de ondas gravitacionais. Podemos, como já comentei, estudar asteroides ou objetos transnetunianos no Sistema Solar. Um bom exemplo é o maior cometa conhecido, que foi descoberto pelo Pedro Bernardinelli. Ele usou técnicas para reprocessar todas as imagens obtidas pelo DES, processar tudo novamente para ver os pontos se movimentando nas imagens e tentar ajustar órbitas. Usando dados cujo objetivo era entender a energia escura, dados profundos que cobrem uma grande área do céu, o Pedro, em pleno século 21 – pois a época da descoberta dos grandes cometas foi há séculos, com Halley e outros – descobriu o maior cometa de que se tem notícia, que recebeu o nome dele e de seu orientador no doutorado, Bernardinelli-Berstein. Essa é a beleza de se ter esses grandes mapeamentos do céu, a descoberta do inesperado e do inimaginável.
FCW Cultura Científica – As novas tecnologias computacionais são fundamentais para o desenvolvimento de pesquisas em astronomia. Poderia falar sobre o algoritmo Copacabana, desenvolvido no DES?
Ricardo Ogando – O Copacabana, acrônimo de COlor Probabilistic Assignment of Clusters And BAyesiaN Analysis, é um tipo de mensurador da massa de um aglomerado de galáxias. Em um levantamento óptico, identificamos galáxias nas imagens e fazemos um catálogo com as posições, propriedades, brilho e outras características. Mas, ao tentar encontrar aglomerações, uma das grandes perguntas é: onde termina o aglomerado? Uma galáxia que está aqui na borda, pertence ou não pertence ao aglomerado? É onde entra o Copacabana, um algoritmo que fornece a probabilidade de a galáxia ser parte do conglomerado. Hoje em dia, a probabilidade é uma questão muito importante nas análises. Antes, fazíamos análises muito determinísticas, do tipo é ou não é, sim ou não, e isso afeta a maneira como se interpreta as incertezas da análise. Ao introduzir a probabilidade, isso já está embutido no resultado. Você dá um número para aquilo, podemos dizer, por exemplo, que há 80% ou 90% de chance da galáxia ser parte do aglomerado. A Marcelle Soares Santos, que é uma uma astrofísica brasileira com carreira internacional, orientou o doutorado do Johnny Esteves, defendido recentemente na Universidade de Michigan, que desenvolveu o Copacabana. Hoje ela, que teve participação ativa na questão da busca por ondas gravitacionais com o DES, está na Universidade de Zurique.
FCW Cultura Científica – Como lidar com a imensa quantidade de dados produzidos pelas pesquisas em Astronomia?
Ricardo Ogando – A astronomia é um exemplo de big data, depende de supercomputadores e de infraestruturas específicas para computação de alto desempenho. Não há como pegar terabytes ou petabytes de dados, baixar em um computador pessoal e analisar. Isso é o chamado quarto paradigma, definido pelo Jim Gray, que foi um pesquisador da Microsoft e atuou bastante no Sloan Digital Sky Survey para montar o primeiro grande levantamento digital, que fez um sucesso enorme. Foi bem sucedido porque eles fizeram uma interface de acesso a dados pensada para que qualquer pesquisador do mundo, de qualquer área, pudesse consultar os dados, os catálogos, as imagens e fazer a sua ciência: do Sistema Solar a quasares distantes. O resultado é que se tornou o levantamento mais citado de todos os tempos por parte dessa usabilidade. Seguindo a orientação de Gray, os dados ficam em infraestruturas capazes de suportar uma quantidade imensa deles e os cientistas levam a análise até os dados, no lugar do paradigma usual de baixar no computador e analisar localmente. A análise é feita na nuvem. O primeiro paradigma era fazer teorias sobre o mundo, o segundo uma forma empírica de entender o mundo, fazer experimentos, e o terceiro é quando as coisas começam a ficar tão complexas que passamos a simular. Isso é uma parte importante da astronomia, simular a formação de uma estrela, simular estruturas em grande escala, simular o universo, porque são processos muito complexos e você não consegue mais apenas resolver as contas do Isaac Newton e chegar a um resultado. E o quarto paradigma é quando se tem uma profusão de dados e aí entra a mineração, entra o aprendizado de máquina, entra a inteligência artificial. É preciso ter formas de primeiro fazer uma limpeza nos dados, porque sempre vai ter "sujeira", essa é uma parte importante de trabalho, tentar entender os domínios dos seus dados, quais são os limites dele, o que tem de errado e se é possível corrigir e separar o joio do trigo, como se diz. Uma vez que os dados estão limpos, por assim dizer, você ainda pode fazer novas seleções. Um exemplo é a separação estrela-galáxia. Temos uma imagem astronômica, rodamos um programa que extrai e acha as fontes na imagem. Sabemos que tem um objeto em uma determinada posição, que o brilho é tanto, sabemos a sua forma, o programa consegue calcular esses parâmetros, mas ele não vai dizer se é uma estrela ou uma galáxia. Quando as fontes estão próximas isso é relativamente fácil de dizer, a estrela é bem puntiforme e é vista com aquelas cruzes, que vêm da óptica do telescópio, mas quanto mais distante uma galáxia mais ela parece uma estrela, um pontinho.
FCW Cultura Científica – E como se faz para saber se é uma galáxia ou uma estrela?
Ricardo Ogando – Observamos em vários filtros, em várias frequências. A fotometria em astronomia profissional é diferente da foto que fazemos com celular ou câmera fotográfica, que já sai colorida. Em geral, observamos em uma região do espectro, depois em outra e em outra, fazemos observações em várias bandas e compomos os dados. Quando olhamos as estrelas e as galáxias as cores são muito importantes, elas têm significado específico, ocupam lugares diferentes do espaço de cores. Estamos falando de uma análise multidimensional, onde usamos muitas cores, então a inteligência artificial e o aprendizado de máquina podem nos ajudar a entender isso. Vai ajudar principalmente se tivermos uma amostra de treinamento. Um bom exemplo são as imagens feitas pelo Telescópio Espacial Hubble que produz imagens mais bem definidas por estar fora da atmosfera, pois a atmosfera causa um bruxuleio, o pisca-pisca das estrelas. Com o Hubble, conseguimos dizer se objetos muito distantes são estrelas ou galáxias. Você pode comparar sua fotometria feita na Terra com a feita pelo Hubble na mesma região do céu, fazer um treinamento usando inteligência artificial e aplicar esse aprendizado no resto do seu levantamento, de modo a fazer a classificação como estrela ou galáxia. Este é um exemplo simples de aplicação de inteligência artificial.
FCW Cultura Científica – O que é um quasar e porque é importante o seu estudo?
Ricardo Ogando – Além de estrelas e galáxias, o quasar, quasi-stellar object ("objeto quase estelar"), é uma fonte superbrilhante, puntiforme e muito distante. Quem observou pela primeira vez achou até que eram estrelas porque pareciam pequenas mas ao mesmo tempo muito brilhantes. Em geral, um quasar está associado ao chamado núcleo ativo de uma galáxia. As galáxias costumam ter um buraco negro supermassivo no centro delas, como o observado pelo Event Horizon Telescope, que fez as primeiras imagens de um buraco negro, tanto na nossa galáxia como em uma galáxia mais ou menos vizinha nossa, a M87. Você costuma ter um buraco negro supermassivo e se a estrela tem gás na vizinhança do buraco negro, pode ser que esse gás comece a cair em direção desse buraco negro e orbitar em um disco. O buraco negro não é um aspirador de pó galáctico, ele não está atraindo coisas, elas estão em órbita dele. Buracos negros têm um raio de ação muito pequeno, mas se algo calha de passar perto de sua zona de influência, pode cair e quando cai é um processo extremamente violento. Esse resultado é o quasar, com a emissão de muita energia, que pode ser vista no raio X, no visível, em rádio etc. O quasar, por ter uma série de propriedades interessantes, é uma fonte muito brilhante, então você consegue enxergar de muito longe. O Telescópio Espacial James Webb, quando observa esses núcleos ativos de galáxia, vê com tanta definição o brilho desses núcleos ativos que chega a formar uma cruz de difração similar a de estrelas, é um negócio impressionante, realmente o James Webb é revolucionário. A imagem do Quinteto de Stephan, que foi uma das primeiras liberadas, tem claramente esse tipo de padrão, então de cara sabemos que ali tem um núcleo ativo, a menos que haja uma grande coincidência de ter uma estrela na frente do núcleo da galáxia. Com o mapeamento da estrutura em grande escala, conseguimos usar um quasar para mapear o universo em distâncias maiores e tentar entender se há diferença entre o que está acontecendo no universo local, observando as galáxias mais próximas, e quasares distantes.
FCW Cultura Científica – Como você vê o momento atual da área de astronomia no Brasil?
Ricardo Ogando – Temos um trabalho infinito, como costuma ser dito. Há muito o que analisar, muito a descobrir, mas, ao mesmo tempo, é uma área pequena. A astronomia é uma área belíssima que atrai muita gente, mas é um caminho e não necessariamente um fim. Nem todos que entram vão se tornar astrônomo profissional, pesquisador ou professor. Principalmente dada a situação no Brasil com relação a contratações. Acho que nos próximos anos vai melhorar, estamos tentando recuperar o estrago dos últimos anos, quando tivemos um momento muito ruim e movimentos anticiência, muita gente saiu da área, mas isso foi em toda a ciência. Com relação à astronomia, infelizmente para a área, mas felizmente para as pessoas em formação, várias acabam depois se posicionando em outros setores. Por conta da relação que comentei entre astronomia, ciência de dados e computação, criei no Observatório Nacional um curso de computação científica, de e-science. A ideia é fornecer uma atualização e mostrar aos participantes recursos novos. Ensinamos a usar a linguagem de programação Python, versionamento de códigos em repositórios remotos com Github, trabalho de forma colaborativa, participamos de hackathons, mostramos boas práticas científicas. Isso foi importante para abrir novos horizontes e estudantes se posicionarem na indústria.
FCW Cultura Científica – Uma importante preocupação sua é a divulgação científica. Poderia falar sobre algumas das iniciativas do Observatório Nacional nesse sentido?
Ricardo Ogando – O Observatório Nacional tem mais de 190 anos, com uma longa história e um personagem muito importante em educação científica, que foi o Ronaldo Mourão. Mais recentemente, temos realizado trabalhos de formação de professores, que se tornam o que chamamos de astroeducadores, e temos outro programa importante que é o Olhai pro Céu, que empresta telescópios para professores levarem para escola e espalharem o aprendizado da astronomia. Durante a pandemia de covid, passamos a realizar lives, que ampliaram muito o alcance desse trabalho de divulgação. Fizemos lives de grandes eventos astronômicos, como a ocultação de Marte pela Lua e a conjunção de Júpiter e Saturno, que atraíram centenas de milhares de pessoas para o canal do Observatório Nacional no YouTube. O ápice foi em outubro de 2023, com o eclipse solar anular no Nordeste do Brasil. Fomos para Carnaúba dos Dantas, no Rio Grande do Norte, e no alto do Monte do Galo, montamos uma infraestrutura para a live, com colaboradores ao longo de toda a linha do eclipse no Norte e Nordeste, passando por Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, e Rio Grande do Norte. Foi algo incrível, com uma logística que contou com a participação de astrônomos amadores e de profissionais de institutos federais e universidades. O evento fez parte da transmissão do Time and Date, que é um serviço tradicional que também transmite eclipses, e atingimos mais de 1 milhão de pessoas. No canal do Observatório Nacional, alcançamos mais de 2 milhões de pessoas. Além disso, temos uma grande preocupação de transformar artigos científicos em notícias, temos o Ciência no Rádio, programa do qual eu costumo participar e que é transmitido pela rádio MEC e depois vai para a internet, onde pode ser ouvido a qualquer momento. E este ano estamos organizando a Olimpíada Internacional de Astronomia e Astrofísica, que será em Vassouras de 17 a 27 de agosto. A Josina Nascimento, pesquisadora do Observatório Nacional, liderou o esforço para trazer a olimpíada para o Brasil pela segunda vez, a primeira foi em 2012. Minha responsabilidade principal é organizar as questões das provas produzidas por um comitê acadêmico de alto nível, com professores do ON, USP, UFRJ, entre outros. A Olimpíada Internacional terá a participação de cerca de 250 estudantes de mais de 50 países, com uma diversidade cultural incrível. Os estudantes brasileiros são selecionados e treinados pela OBA, a Olimpíada Brasileira de Astronomia, que conta anualmente com a participação de milhares de jovens e é outra iniciativa muito importante para a popularização da astronomia em todo o país.