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Precisamos de mais Eunices

Marcelo Rubens Paiva, vencedor do Prêmio FCW de Cultura 2025, destaca em discurso de agradecimento o legado de sua mãe, Eunice Facciolla Paiva, protagonista do livro e filme Ainda Estou Aqui


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Marcelo Rubens Paiva, vencedor do Prêmio FCW de Cultura 2025


Discurso de agradecimento

30/10/2025


Em 2024, o filme Ainda Estou Aqui estreou no Festival de Veneza. Foi num domingo, num fim de tarde ensolarado e abafado. Nunca imaginamos a repercussão que o filme teria. Corrigindo: nunca imaginamos que a vida da minha mãe seria tão debatida.


Eu e três das minhas irmãs, Veroca, Nalu e Babiu, fomos os primeiros a entrar no tapete vermelho, com uma centena de paparazzi gritando nossos nomes. Eu não imaginava que sabiam dos nossos nomes. Nos dias anteriores, Angelina Jolie e Nicole Kidman passaram calor naquele tapete. Horas depois, Brad Pitt e George Clooney desfilaram por ali.


A história da nossa família, a prisão e desaparecimento político do meu pai, Rubens Paiva, em janeiro de 1971, durante a ditadura militar no Brasil, mais a ética, o drama, a luta e o sorriso da minha mãe, Eunice Facciolla Paiva, começavam naquela tarde a emocionar europeus e, depois, canadenses, americanos, asiáticos, africanos, sul-americanos, jovens e velhos.


Tinha uma explicação. O legado da minha mãe foi transformar a dor em luta, sem se fazer de vítima. A mensagem que ela passa: o antídoto para o sofrimento é o ativismo. Mas pouco conheceram o fim trágico da história, a sua perda de memória por conta do Alzheimer.


Alguém com Alzheimer morre aos poucos. Sua alma se evapora antes do físico derreter. Por vezes, falávamos da minha mãe no passado, apesar de ela estar por perto, imóvel, numa cadeira de rodas. Por vezes, ela tinha lampejos de lucidez. Foi num desses que reclamou: "Ainda estou aqui..." Sim, mãe, logo corrigíamos, sabemos disso, nos desculpe.


A cena acima está no livro, mas não aparece no filme. Nem precisou. Walter Salles se inspira em Godard, que dizia que "cinema é subtração". Fez uma precisa e resumida adaptação cinematográfica. O foco foram os tempos da ditadura militar. O livro publicado em 2015 procura relembrar aos brasileiros o que realmente foi uma ditadura.


Vivíamos anos conturbados no Brasil, em que um projeto extremista pedia intervenção militar e glorificava torturadores. Defendo a tese da literatura como missão. Somos animais políticos.


Ao começar a escrever o livro, tive uma descoberta: minha mãe não era "apenas" a viúva de um desaparecido politico, como era tratada pela imprensa, mas atuou em todos os momentos cruciais dos anos da ditadura e da reconstrução democrática, estava em Brasilia com meu pai, deputado, no Golpe de 1964, foi presa com ele em 1971, lutou pelo reconhecimento dos desaparecidos políticos, pelo fim da ditadura, pelos direitos indígenas na Constituinte de 1988 e viu a democracia ser reconstruída.


Sem contar que cuidou sozinha de cinco filhos e sem dinheiro, já que sem o atestado de óbito não conseguia ter acesso ao patrimônio deixado pelo meu pai, ao seguro de vida, à aposentadoria.


Minha mãe carregou o fardo do Alzheimer por mais de quinze anos. No cemitério em São Paulo, foi levada ao mausoléu dos Facciolla, uma casinha mediterrânea azul e branca que, da avenida, dá para ver o telhado e parte da fachada; sempre que passo de ônibus ou carro, a vejo e aceno. Foi enterrada com sua mãe, tias e tios, cujas placas indicavam a data da morte, mas não a do nascimento, de parentes italianos que vieram no começo dos 1900 e não sabiam o dia em que nasceram. Cada nome, uma fotinha. A da minha mãe é uma em que ela sorri.


Escrever sobre ela foi a melhor maneira de entender o porquê do seu carisma. Ela era católica. Quando me via lendo sobre anarquismo, com minha camiseta do Sex Pistols, ou lia os primeiros textos que publiquei, para revistas punks dos anos 1980, e meus primeiros livros, niilistas e sarcásticos, perguntava se eu não acreditava em Cristo.


Ela me mandava prestar atenção na ética cristã e me fez ler livros da Teologia da Libertação. E foi essa ética que seguiu e moldou a heroína brasileira, que agora muitos conhecem. Estava feliz, realizada como advogada, com planos. Nas fotos dessa época, sempre aparece surpreendentemente sorrindo ou gargalhando.


Meses depois da sua morte, sonhei com ela. Entrei no seu antigo apartamento, com os móveis da minha infância, com o cheiro de sempre, a luz de sempre, fui abraçá-la e dizer: "Preciso tanto de você..."


Era o auge do declínio da democracia brasileira e de muitos países. É com esse sentimento que o público do filme fica, depois de ler o livro e assistir ao filme: "Precisamos tanto de Eunices..." Pessoas me param nas ruas e me dizem que sou "necessário". Me param nas ruas para dizer que o livro e o filme vieram no momento certo.


Em Veneza, o filme foi ovacionado por mais de dez minutos. Eu me perguntava se era o espírito italiano da minha mãe que fez vibrar aquele festival. Não. Jornalistas e cineastas temerosos com a ascensão de uma primeira-ministra de extrema-direita, Giorgia Meloni, temiam o ressurgimento do fascismo.


E, por onde passamos, em festivais de cinema nos EUA, Espanha, Portugal, França, Alemanha, era sempre a mesma sensação. A crise das democracias precisava de alguém que segredasse no ouvido dos espectadores: resistam, sem perder o sorriso. Esse alguém era a minha mãe.


O filme e o livro viraram um fenômeno no Brasil polarizado. Nos EUA, meses depois de Trump ser eleito, ficou em cartaz em mais de 1 mil salas. Na China, em 10 mil salas. Fernanda Torres tornava-se um ícone. Ela ficou tão envolvida no papel que quando eu a telefonava, ela me respondia em italiano: "Figlio mio..."


Em paralelo, o livro começou a ser traduzido para italiano, espanhol, inglês, francês, será publicado em Taiwan e até na Arábia Saudita! Poderão conhecer detalhes da vida dessa grande mulher.


Muito obrigado.



 
 
 

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