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Ciência, atividade coletiva

Parasitologista reconhecido internacionalmente, Erney Plessmann de Camargo reergueu instituições científicas e sempre mostrou preocupação com as questões sociais


Revista Pesquisa FAPESP / Danilo Albergaria - 14/03/2023


O parasitologista Erney Plessmann de Camargo pensava o papel do pesquisador para além da contribuição à determinada área do conhecimento. Para ele, o cientista tinha uma função social que não poderia se resumir ao cultivo da própria carreira. A ciência deveria ser uma atividade coletiva e visar o bem de todos. Pesquisador de doenças negligenciadas, Camargo teve atuação relevante no combate à malária e à doença de Chagas na Amazônia e na África. “Erney não foi só um grande cientista”, diz a biomédica Helena Nader, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), atual presidente da Academia Brasileira de Ciências. “Ele tinha uma preocupação com a formação de recursos humanos para a ciência e para que a ciência pudesse melhorar as condições de vida das pessoas.” Camargo morreu aos 87 anos no dia 3 de março em São Paulo, em consequência de complicações de uma cirurgia na coluna.


O pesquisador nasceu em Campinas, no interior de São Paulo. Quando ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), em 1953, era um jovem de esquerda, de origem modesta, em um meio dominado pela elite econômica e intelectual do estado. No segundo ano de graduação, encontrou outros estudantes e professores com quem se identificou no Departamento de Parasitologia, chefiado por Samuel Pessoa (1898-1976). Comunista militante, Pessoa era catedrático desde 1931 e jamais escondeu suas convicções políticas, mesmo durante períodos repressivos, como o Estado Novo (1937-1945).


Camargo formou-se em 1959 e passou por um estágio no Instituto Butantan antes de ser contratado como auxiliar de ensino na FM-USP em 1961. No ano seguinte, começou a pesquisar o crescimento e a diferenciação celular do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas. Para entender a bioquímica do protozoário era preciso grande quantidade deles, mas os meios de cultivo eram muito ineficientes: “Não dava para fazer [a pesquisa] com uma ninharia [de T. cruzi]”, ele contou, em 2013, em entrevista a Pesquisa FAPESP. Depois de tentar muitas combinações diferentes de ingredientes, obteve o meio de cultura ideal. “Foi muito importante, não só para mim, porque possibilitou que todos que viessem a trabalhar com Trypanosoma pudessem produzir o protozoário em escala”, esclareceu na mesma entrevista. Os resultados foram publicados em 1964, em um artigo que virou referência internacional sobre o assunto e é citado até hoje.


No mesmo ano de publicação veio o golpe militar e, com ele, a instauração de um inquérito policial militar (IPM) na FM-USP, na avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo, com anuência da direção da faculdade. Denúncias internas de “subversão” orientavam interrogatórios de seus principais alvos – entre eles, os pesquisadores da parasitologia. Segundo Camargo, a visão social dos membros daquele grupo é o que causava problemas. “Mais do que a política, foi o envolvimento do departamento no combate às endemias brasileiras que lhe deu a fama de comunista, uma vez que o combate a essas endemias envolvia a denúncia da pobreza e das precárias condições sanitárias da população”, relatou em depoimento à Comissão da Verdade da USP em 2015, no volume sobre a FM. Havia também conflitos de opinião sobre temas acadêmicos. “Dentre eles, dois predominavam: um, a necessidade da modernização na pesquisa e incentivo à investigação experimental versus o conhecimento livresco e erudito de muitas disciplinas; o outro, a necessidade de uma reforma universitária que restringisse o poder do catedrático”, contou.


Logo após o IPM, ocorreu a demissão sumária de vários professores e cientistas. Camargo e muitos outros perderam o emprego e o Departamento de Parasitologia foi praticamente desmontado. Pessoa, além de demitido, acabou preso. Ainda em 1964, o zoólogo norte-americano Walter S. Plaut (1923-1990), em passagem rápida pelo Brasil, convidou Camargo para trabalhar na Universidade de Wisconsin em Madison, nos Estados Unidos.


O pesquisador, já casado com a professora de literatura inglesa Marisis Aranha Camargo e com filhos, aceitou. A família viveu em Madison até 1968. Nesse ano, o governo militar promoveu um programa de repatriação de cientistas e Camargo foi convidado a voltar. A opção foi pela FM-USP, campus de Ribeirão Preto, onde organizou as pesquisas que havia feito nos Estados Unidos e defendeu sua tese de doutorado. Pouco tempo depois, foi demitido novamente por causa do recrudescimento da repressão política.


Passou algum tempo na iniciativa privada editando fascículos para a Editora Abril e trabalhando em um laboratório de análises clínicas. Foi, então, contratado em 1970 pela Escola Paulista de Medicina (EPM), atual Unifesp, para liderar as pesquisas em parasitologia. Ao longo dos 15 anos em que atuou na EPM, ajudou a transformar a instituição em uma referência na área e a constituir a pós-graduação do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da atual Unifesp.


Em 1979, Camargo obteve o título de livre-docente em bioquímica pela USP, e em 1984, realizou pós-doutorado no Instituto Pasteur, na França. Durante a redemocratização, voltou ao Departamento de Parasitologia da USP como professor titular, com a tarefa de reconstruí-lo. O imunologista Osvaldo Augusto Sant’Anna, do Instituto Butantan, presenciou a cerimônia de posse de Camargo, em 1986. Segundo ele, o acontecimento teve uma profunda dimensão simbólica: “Foi memorável e emocionante. Ali estava o representante de um departamento excepcional, que havia sido desmontado pela ditadura, voltando para assumir a cátedra de Samuel Pessoa”.


Maduro, Camargo havia desenvolvido a capacidade de formar e liderar equipes científicas. Essa habilidade foi importante para a reconstrução do departamento, realocado da FM para o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e como pró-reitor de Pesquisa da USP, cargo que Camargo exerceu entre 1988 e 1993. “Me impressionava sua capacidade de liderança. Ele sabia estimular os estudantes de graduação e pós-graduação e harmonizar os diferentes cientistas nos grupos que organizou”, diz Rubens Belfort Junior, professor do Departamento de Oftalmologia da Unifesp. Ele exalta o sucesso de Camargo na Unifesp, USP e ao liderar outras instituições.


O parasitologista foi diretor do Instituto Butantan de 2002 a 2003. Entre 2003 e 2007, presidiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Foi uma das melhores gestões que o CNPq teve”, avalia Nader. O linguista Carlos Vogt, que foi presidente da FAPESP de 2002 a 2007, elogia a maneira eficiente com que Camargo promoveu ações coordenadas entre o CNPq e as agências de fomento estaduais. Durante a gestão de Camargo, a agência federal estabeleceu e colocou as plataformas Lattes e Carlos Chagas on-line, importantes mecanismos de informação e integração de pesquisadores no Brasil. “Por onde ele passou, em todas as ações administrativas, sempre se saiu com brilho. Tinha um senso de responsabilidade e criatividade institucional muito grande”, completa Vogt. Camargo também presidiu a Fundação Zerbini, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e a Sociedade Brasileira de Protozoologia.


Mesmo com a dedicação aos cargos administrativos, o pesquisador nunca perdeu de vista a pesquisa. Continuou publicando artigos científicos até o ano passado – são 147 no total. Com o parasitologista Luiz Hildebrando Pereira da Silva (1928-2014), amigo e igualmente originário do grupo de Samuel Pessoa, ele formou uma destacada parceria no combate à malária na Amazônia, instalando postos avançados do ICB da USP para pesquisa e enfrentamento da doença. Um desses postos, o ICB-5, em Rondônia, é liderado pelo médico Luis Marcelo Aranha Camargo, professor assistente do ICB-USP e um de seus filhos. Também participou do programa ProÁfrica, do CNPq, e visitou países africanos por vários anos para cooperação científica.


Luiz Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP, afirma que Camargo inspirou gerações de cientistas: “Erney foi um incansável defensor da ciência, um cientista com visão social, um gestor que buscava inovar. Deixa um legado na ciência produzida, nos ensinamentos e diálogo com seus pares e alunos. Como aluno da Escola Paulista de Medicina tive a honra de tê-lo como professor em minha graduação”.


De acordo com Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP, o parasitologista não era apenas um pesquisador reconhecido internacionalmente, mas uma pessoa gentil e preocupada com os destinos da universidade e do país. “Aprendi muito com ele, em especial na transição entre a sua gestão e a minha como presidente do CNPq. Tive a honra de saudá-lo quando recebeu o título de professor emérito da USP em 2021″, contou Zago.


Também em 2021, Camargo assumiu o cargo de diretor-presidente da Fundação Conrado Wessel. Ainda o exercia quando faleceu. Vogt, que o sucede, afirma que ele conseguiu recuperar a FCW de uma situação crítica. Belfort, que também colaborou na recuperação da instituição, resume: “Pessoas como ele deixam sementes. Em todos os lugares pelos quais passou, gerou grupos que seguem os mesmos ideais”. Camargo deixa a esposa, os filhos Marcelo, Fernando, Eduardo e Anamaria – todos cientistas – e 12 netos.



Imagem: ICB-USP

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