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Saúde na Amazônia

Entrevista

Paulo Basta

Pesquisador da Fiocruz estuda os efeitos da contaminação por mercúrio em terras indígenas. Problema atinge a população de toda a Amazônia por meio do consumo de pescado com altos níveis do metal tóxico usado no garimpo ilegal

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Sobre

Pesquisador titular e docente na pós-graduação da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), coordena os grupos de pesquisa “Ambiente, Diversidade e Saúde” e “Epidemiologia e Controle da Tuberculose em Áreas Indígenas”. Faz parte do grupo de trabalho para elaborar o plano setorial para implementação da Convenção de Minamata no Brasil e da Rede de Biomonitoramento de Contaminantes Químicos, coordenados pela Coordenação Geral de Vigilância Ambiental do Ministério da Saúde. Foi consultor do Departamento de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde para o controle da tuberculose e atua como supervisor do Programa Mais Médicos para o Brasil em territórios indígenas da Amazônia desde 2013.

 

É formado pelo Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC, com especialização em medicina do trabalho pela Universidade de São Paulo, especialização em saneamento ambiental pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutorado em Saúde Pública pela Fiocruz. Seu interesse em pesquisa e docência se concentra na saúde dos povos indígenas e originários das Américas, com ênfase em epidemiologia, vigilância em saúde, saúde e ambiente, controle da tuberculose, saúde comunitária e atenção básica, práticas integrativas e complementares em saúde e contaminação por mercúrio. 

FCW Cultura Científica – As consequências do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami têm chocado o mundo e provocado grande indignação, mas não é a primeira vez que isso ocorre na região e muito menos na Amazônia. 

Paulo Basta – A expansão do garimpo sobre o território da Amazônia remonta pelo menos às décadas de 1970 e 1980 de maneira mais sistematizada, mas há registros de mineração na Amazônia desde o início do século 20. Um dos garimpos mais antigos é o do Tepequém, em Roraima, desativado depois de todo o potencial de mineração ter sido explorado. A partir do final dos anos 1970, junto com a expansão na Amazônia do projeto de integração nacional da ditadura militar começou um grande fluxo de garimpeiros para a região. Teve o caso célebre de Serra Pelada, no Pará, que recebeu milhares de garimpeiros no início da década de 1980, vivendo de modo quase selvagem em busca do ouro, o que gerou muitas histórias e até filme. Quando a jazida se esgotou, os garimpeiros se dirigiram para outras áreas na Amazônia. Muitos foram para as calhas do rio Tapajós, também no Pará, onde se instalaram e permanecem até hoje. Mas naquele momento, meados dos anos 1980, a maior movimentação foi de Serra Pelada para Roraima, onde o garimpo se instalou na terra Yanomami na primeira corrida do ouro na região. Em Roraima, como a situação foi muito drástica, houve um movimento por parte do governo federal para rechaçar o garimpo ilegal, principalmente por conta de denúncias da comunidade internacional. Isso ocorreu no início dos anos 1990, com a possibilidade de realização da ECO-92 no Rio de Janeiro. A comunidade internacional estava se reunindo em torno de questões sobre o meio ambiente e aquela foi a primeira grande conferência realizada sob o tema e falando de mudanças climáticas. 

 

FCW Cultura Científica – Foi nesse momento, pouco antes da ECO-92, que o movimento pela demarcação da Terra Yanomami ganhou força?

Paulo Basta – Houve uma pressão para que o governo brasileiro tomasse uma providência a respeito do garimpo ilegal, pois desde o final dos anos 1980 havia denúncias de crimes praticados na região onde vive o povo Yanomami. Tem áreas em que a mortalidade variou entre 15% e 30% da população local, em decorrência do contato violento com o garimpo, da transmissão de doenças e da contaminação por mercúrio. Cenas infelizmente semelhantes às que temos visto hoje. Na época, o então governo Collor assumiu o compromisso, pressionado pela comunidade internacional, de fazer a desintrusão da terra Yanomami. Em 1991, foi realizada a operação Selva Livre e a Terra Indígena Yanomami foi demarcada. No ano seguinte foi homologada e começaram operações mais intensificadas, como explosão de pistas clandestinas de pouso. Com a desintrusão dos garimpeiros, de meados da década de 1990 até meados da década de 2010, houve uma certa calmaria no território Yanomami, mas a partir do final de 2013 o afluxo de garimpeiros voltou com força na região, expandindo-se drasticamente a partir de 2016 e atingindo o ápice durante o governo Bolsonaro. 

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Efeitos do garimpo ilegal próximo à área onde vive a comunidade isolada Moxihatëtë, na Terra Indígena Yanomami (foto: Leo Otero / MPI - Agência Brasil)

FCW Cultura Científica – Como começou o seu trabalho em saúde com os Yanomami?

Paulo Basta – Eu trabalho com o povo Yanomami desde 1999. Fui médico das equipes multidisciplinares de saúde do Distrito Sanitário Yanomami, peguei o movimento de restruturação quando houve a desintrusão e investimentos por parte do governo. O Distrito Sanitário Yanomami foi, em 1991, o primeiro distrito sanitário indígena criado no país. Foi a única vez que houve concurso público para a fixação, em áreas indígenas, de profissionais de saúde: médicos, enfermeiros, farmacêuticos e veterinários. Houve investimento da comunidade internacional. Várias organizações da sociedade civil estavam presentes, como a diocese de Roraima, a Missão Evangélica Amazônica, a Missão Novas Tribos do Brasil, os Médicos do Mundo, os Médicos sem Fronteira e a Comissão Pró-Yanomami, originalmente chamada de Comissão pela Criação do Parque Yanomami. Essas organizações prestavam atendimento em diferentes pontos da Terra Indígena Yanomami, que compreende 9,6 milhões de hectares, uma área muito vasta, e cada organização ficou responsável pelo atendimento em uma parte. Durante esse movimento de reestruturação, fui contratado pela Comissão Pró-Yanomami como médico para trabalhar na região. Éramos poucos médicos, estavam começando os cursos de formação de agentes indígenas de saúde, de microscopistas indígenas de malária e trabalhei com os Yanomami por dois anos. 

FCW Cultura Científica – Em seguida você conduziu um projeto de pesquisa para investigar a tuberculose em povos indígenas? 

Paulo Basta – Depois do trabalho com o povo Yanomami, fui para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, do outro lado de Roraima, realizar trabalhos em saúde com os povos Macuxi, Wapichana e Ingarikó. Em seguida, em 2002, vim para o Rio de Janeiro iniciar minha carreira acadêmica na Fiocruz. Entrei no mestrado, passei para o doutorado e, em 2006, me tornei pesquisador na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, sempre trabalhando com a temática da saúde indígena. Durante o doutorado, comecei a estudar a questão da tuberculose com o povo indígena Surui Paiter, em Rondônia, que depois virou um projeto de pesquisa

 

FCW Cultura Científica – Como começou seu interesse em estudar os efeitos do uso de mercúrio pelo garimpo ilegal na Amazônia?

Paulo Basta – O Davi Kopenawa, principal liderança do povo Yanomami, um grande xamã, líder dos povos originários do Brasil de modo geral, pessoa respeitada tanto no país como internacionalmente, é meu amigo há muitos anos. Em 2011, convidei o Davi para fazer a abertura de um curso de Introdução à Saúde Indígena na Fiocruz, no Rio de Janeiro, e ele veio, se hospedou na minha casa. Quando conheceu a Fiocruz, ficou encantado com as possibilidades de parceria. Em 2013, na posição de presidente da Hutukara Associação Yanomami, o Davi escreveu uma carta para nós, pedindo apoio para ajudá-los a entender os impactos do garimpo ilegal e do uso indiscriminado de mercúrio na terra indígena. Na época eu ainda não trabalhava com mercúrio, mas com tuberculose e outros temas de saúde indígena. Então, me organizei internamente na Fiocruz e me reuni com a Sandra de Souza Hacon, colega pesquisadora que estuda a questão do mercúrio na Amazônia há muito anos, mas que nunca havia trabalhado com povos indígenas. Fizemos um projeto juntos, que foi aprovado pela Fiocruz, conseguimos um financiamento pequeno, montamos uma equipe igualmente pequena e fomos ao território Yanomami em 2014. Fizemos o trabalho nas três áreas indicadas pelo Davi Kopenawa e descobrimos uma situação bastante delicada em relação à contaminação por mercúrio. 

FCW Cultura Científica – O que vocês descobriram? Quais foram os principais achados da pesquisa?

Paulo Basta – Examinamos principalmente mulheres e crianças. Pesamos, medimos, colhemos dados sobre alimentação e coletamos amostras de cabelo, utilizadas como biomarcador de exposição ao mercúrio. Visitamos 19 comunidades espalhadas pelo território, onde avaliamos 239 participantes e verificamos que as prevalências de contaminação variaram de 7% a mais de 90%. A menor prevalência foi na região do Papiú, mais ao centro da Terra Yanomami, que sofreu muitos impactos durante a primeira corrida do ouro na década de 1980. Com a desintrusão no início dos anos 1990, fazia tempo que não tinha garimpeiros ali, então seria uma área controle para o nosso estudo. Mas, apesar de há quase 30 anos não haver garimpeiros na região, ainda assim 7% das pessoas analisadas apresentaram níveis elevados de mercúrio nas amostras de cabelo. Esse dado é importante por mostrar a permanência do mercúrio no ambiente, causando danos ao ecossistema e à população três décadas depois de a atividade do garimpo ter sido interrompida. Há estudos que indicam que o mercúrio continua no ambiente por um século. 

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Utilizado pelo garimpo, o mercúrio permanece por décadas no ambiente, causando danos ao ecossistema e à população muito tempo depois de cessar a mineração (foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)

FCW – Além do Papiú, onde mais vocês realizaram os primeiros estudos sobre contaminação de mercúrio?

Paulo Basta – Estudamos outras duas grandes áreas mais ao norte, na fronteira com a Venezuela. Uma delas é habitada pelo povo Ye'kwana, outro grupo étnico que vive na Terra Yanomami e que mantinha uma relação mais ou menos próxima com os garimpeiros, às vezes prestavam algum serviço, como transporte de barco. Verificamos que quase 30% dos habitantes da comunidade tinham níveis elevados de mercúrio nas amostras de cabelo. Estudamos também a região de Aracaçá, que esteve presente no noticiário em 2022 por causa de violação de mulheres, de estupros, onde uma aldeia foi queimada e as pessoas tiveram que fugir dos garimpeiros. Desde o final de 2014 que a região estava sendo muito afetada pelo garimpo ilegal e verificamos que 92% das pessoas apresentavam níveis elevados de contaminação por mercúrio. 

 

FCW – Diante de um quadro tão grave, vocês divulgaram os resultados em seguida?

Paulo Basta – Produzimos um relatório de pesquisa detalhando o procedimento metodológico, os locais visitados, as análises que foram feitas e os principais resultados. Em março de 2016, fizemos uma caravana – com representantes da Fiocruz, da Hutukara Associação Yanomami e do Instituto Socioambiental – e levamos o relatório a Brasília. Fomos no Ministério da Saúde, entregamos para o secretário especial de saúde indígena, fomos no Ministério da Justiça, entregamos ao presidente da Funai e ao presidente do Ibama. Fomos na Procuradoria Geral da República na Sexta Câmara para Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, que na época era presidida pela Débora Duprat, e o Davi Kopenawa entregou o documento em mãos e ela. Entregamos também para Victoria Tauli-Corpuz, que em 2016 era a relatora especial das Nações Unidas sobre direitos dos povos indígenas. 

 

FCW – Como foi a repercussão?

Paulo Basta – O relatório e todo o movimento a partir dos resultados que mostravam a grave contaminação por mercúrio tiveram forte repercussão entre as autoridades e na mídia. Como consequência, em abril de 2016, apenas um mês depois de termos feito a peregrinação por Brasília, o Ibama fez a primeira operação de desintrusão na terra indígena. Depois fez mais nove, complementando dez operações de desintrusão de garimpeiros até o fim de 2018. Mas quando o Bolsonaro assumiu a presidência, ele interrompeu a fiscalização, sabotou toda a política ambiental, toda a política indigenista e, paralelamente a isso, fez vários discursos e pronunciamentos públicos incentivando a invasão dos territórios. O resultado é a tragédia que estamos presenciando hoje na Terra Indígena Yanomami. 

 

FCW – O Davi Kopenawa convidou vocês a fazerem a pesquisa há uma década, antes de o problema se transformar em tragédia. 

Paulo Basta – O Davi é um sábio, grande cientista da natureza e vislumbrou na época que o movimento migratório dos garimpeiros ilegais estava em expansão e que isso traria problemas para os povos indígenas. Costumo dizer que de uma maneira visionária ele pressentiu a tragédia e pediu ajuda. Ele antecipou o que estaria por vir nos anos seguintes. 

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A partir de 2018, a fiscalização do garimpo ilegal em terras indígenas diminuiu e, em algumas áreas, foi totalmente suspensa (foto: Bruno Kelly / HAY)

FCW – Como continuou a pesquisa sobre contaminação por mercúrio?

Paulo Basta – Depois da divulgação do nosso trabalho com os Yanomami, outros povos indígenas souberam e nos procuraram. Fizemos em seguida um estudo aprofundado no Pará com o povo Munduruku, que sofre há décadas com a presença do garimpo, impacto que foi ampliado nos últimos quatro anos. A Associação Indígena Pariri, que representa o povo Munduruku, solicitou nossa ajuda na Fiocruz para entender as consequências da presença dos garimpeiros e do uso de mercúrio em seu território. A partir da experiência com os Yanomami, montamos um projeto de pesquisa maior, que contou com sete médicos, além de enfermeiros, biólogos, antropólogos e psicólogos, e fomos a campo, na área indicada pela Associação Pariri. Os Munduruku vivem no coração da Amazônia, na divisa entre Amazonas, Mato Grosso e Pará, onde se juntam os rios Teles Pires e Jurena para formar o Tapajós. Descendo o Tapajós, chegamos na Terra Indígena Sawré Muybu, pertencente ao povo Munduruku, que foi o local onde fizemos o trabalho. Estudamos três aldeias, a Sawré Muybu e a Poxo Muybu, nas margens do Tapajós, e a Sawré Aboy, às margens do rio Jamanxim, um afluente importante na margem direita do Tapajós. 

 

FCW – Como foi feita a pesquisa e quais foram os principais resultados?

Paulo Basta – Nas três aldeias Munduruku, visitamos 35 domicílios e avaliamos 200 pessoas. Em outubro e novembro de 2019, fizemos entrevistas, avaliações médicas, clínicas e laboratoriais, coletamos amostras de cabelo para avaliar os níveis de mercúrio e coletamos também amostras de pescado, que são consumidos pela comunidade como principal fonte de alimento. As análises revelaram que todos, sem exceção, adultos, crianças ou idosos, mulheres ou homens, todos tinham níveis de mercúrio no cabelo. E em seis de cada dez pessoas, os níveis eram elevados. Todas as 88 amostras de pescado que analisamos apresentaram níveis de mercúrio no tecido muscular dos peixes, portanto colocando a sociedade local em risco de desenvolver doença. Na aldeia de Jamanxim, que pegava a jusante das ações garimpeiras, 90% apresentaram altos índices de contaminação. Esse trabalho de pesquisa resultou em seis artigos científicos. Descrevemos alterações somatossensoriais e cognitivas na população de estudo e vimos que a maior frequência desses sinais e sintomas estava presente nas pessoas com índices de mercúrio mais elevados nas amostras de cabelo. Fizemos uma análise de crianças menores de dois anos e suas mães, um grupo de 36 pessoas, e observamos tanto nas mulheres como nas crianças níveis elevados de mercúrio. Uma das crianças, com 11 meses, apresentou um limite três vezes superior ao considerado seguro pela Organização Mundial de Saúde. Outro artigo, liderado pela psicóloga do grupo, mostrou os impactos na organização social das comunidades e descreveu a presença de sintomas como nervosismo e irritabilidade associados também aos maiores índices de contaminação. Um outro trabalho analisou polimorfismo no gene que formula uma enzima responsável pela metabolização de metais pesados e de mercúrio no corpo humano. Quando esse poliformismo está presente – no caso, em dois adolescentes – o organismo leva mais tempo para poder eliminar o mercúrio. Isso significa que, além dos riscos socioambientais provocados pela presença do garimpo e pelo uso discriminado de mercúrio, algumas questões genéticas em particular aumentam o risco de adoecimento. Os dois jovens tinham níveis médios de mercúrio maior do que outros jovens da mesma idade e já apresentavam sinais e sintomas neurológicos associados aos níveis elevados. Outro trabalho avaliou peixes consumidos na região. Descrevemos as espécies, nomes populares, as quantidades de unidades coletadas, tamanhos, pesos e os níveis de mercúrio. Fizemos uma análise de risco atribuível ao consumo para a saúde da população e vimos como cenário mais conservador que os riscos variaram de quatro a oito vezes mais. A quantidade de mercúrio ingerida por intermédio do pescado contaminado amplia o risco de adoecimento e eleva as chances de as pessoas terem sinais e sintomas relacionados à contaminação por mercúrio. 

 

FCW – Qual foi o impacto da pesquisa?

Paulo Basta – Em 2020, preparamos um relatório técnico descrevendo os resultados. Na época, infelizmente não conseguimos apresentar nas comunidades por conta da pandemia de Covid-19, mas entregamos na sede do Ministério Público do Estado do Pará em Santarém e para as lideranças indígenas que solicitaram o estudo. Explicamos os principais achados e propusemos encaminhamentos. Os resultados da pesquisa tiveram importante repercussão na mídia. Participei de vários eventos, participei de ações do próprio governo federal e nosso material subsidiou o grupo de transição que está fazendo parte do novo governo Lula. Sem dúvida, os resultados contribuíram para deflagrar as ações emergenciais colocadas em ação no início de 2023. 

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A contaminação por mercúrio não está restrita às áreas próximas aos garimpos ilegais, mas se espalha por peixes e rios (foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

FCW – Vocês também analisaram casos de sintomas severos de contaminação?

Paulo Basta – Algo que tem preocupado muito as aldeias Munduruku é o nascimento de crianças com síndromes ou malformações congênitas. O número desses casos tem aumentado a cada ano e as crianças têm correspondência, pelo menos na aparência, com os casos de doença de Minamata no Japão na década de 1950. Temos suspeita de que essas crianças Munduruku foram expostas ao mercúrio durante o período pré-natal e que essas malformações congênitas têm alguma associação com essa exposição. Mas não podemos afirmar isso categoricamente, pois não fizemos um estudo que acompanhasse a criança desde o pré-natal até o nascimento e os primeiros anos de vida para dizer com todas as letras que esses casos são atribuídos sim à exposição de mercúrio. 

 

FCW – Vocês pretendem avançar no assunto?

Paulo Basta – Sim. Para tentar obter evidências mais consistentes da associação entre a contaminação, a malformação congênita e os problemas relacionados ao neurodesenvolvimento infantil, vamos começar em março a primeira atividade relacionada a um novo estudo longitudinal de gestantes e recém-nascidos indígenas expostos ao mercúrio na Amazônia. No Pará, pretendemos estudar 12 aldeias Munduruku de modo a monitorar gestantes desde o início da gestação. Vamos convidar as gestantes a participar do estudo, faremos entrevistas, coletas de amostras de cabelo, monitoramento da gestação, monitoramento de exames pré-natal recomendados pelo Ministério da Saúde e acompanharemos todas até o momento do parto. Avaliaremos as condições do nascimento da criança, se foi parto normal ou cesárea, qual foi o peso ao nascer, se teve assistência hospitalar, se foi parto domiciliar, se teve algum tipo de malformação congênita, qual foi a reação da criança, vamos coletar amostra de sangue do cordão umbilical para ver a exposição no momento do parto. Queremos acompanhar as crianças até completarem dois anos, aplicando testes para avaliar o neurodesenvolvimento. Nossa hipótese de estudo é que a exposição pré-natal ao mercúrio provoca impactos no neurodesenvolvimento infantil, considerando alterações motoras, sensitivas e cognitivas e a inteligência da criança. 

 

FCW – A contaminação por mercúrio não está restrita às áreas próximas aos garimpos ilegais, mas se espalha por peixes e rios. Poderia falar sobre o estudo em que vocês analisaram essa questão?

Paulo Basta – Fizemos um estudo em que analisamos o pescado comercializado em 17 localidades na Amazônia. De março de 2021 a setembro de 2022, contactamos parceiros dessas regiões e fomos a mercados, feiras livres e a locais de desembarque pesqueiro, onde o pescador chega do rio e comercializa diretamente. O estudo indicou níveis elevados de contaminação. Se o pescado apresenta acima de 0,5 micrograma de mercúrio por grama de tecido muscular, a Anvisa recomenda que não seja comercializado ou consumido, mas verificamos em várias localidades peixes com níveis de mercúrio bem acima desse limite. No total, coletamos 1.010 peixes, de 80 espécies diferentes. Apenas 20% estavam livres de contaminação, mas muitos apresentaram índices várias vezes superior ao limite indicado pela Anvisa. A maior concentração estava nos peixes carnívoros e a maior prevalência foi em Roraima, depois no Acre e em Rondônia. A menor foi no Amapá, que ainda assim teve 12% dos pescados com níveis de mercúrio acima dos recomendados. Mas isso não diz respeito a indicadores de saúde e de segurança. Como o Brasil não tem parâmetro de segurança para o consumo de mercúrio, utilizamos um parâmetro da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, a EPA. Vimos que situação não é favorável em lugar algum, em nenhum contexto, nenhum estado, para nenhum grupo populacional. Identificamos ingestão de até 31 vezes mais mercúrio do que limite recomendado como seguro pela EPA. E é importante destacar que fizemos esse trabalho em cidades, considerando pessoas que vivem em centros urbanos na Amazônia. Não incluímos terra indígena, quilombolas, ribeirinhos ou outro povo tradicional onde o consumo de peixe costuma ser maior. Em resumo, verificamos que o risco não está restrito a esses povos e que todo mundo na Amazônia que come peixe proveniente de áreas contaminadas corre risco. 

 

FCW – E qual é a alternativa, parar de consumir peixe?

Paulo Basta – A alternativa é acabar com o garimpo agora, neste instante. Acabar com o uso de mercúrio nessas atividades. Não temos a ilusão de achar que a humanidade vai deixar de ter admiração e desejo pelo ouro, mas é preciso que pelo menos nos processos minerais não se utilize mais mercúrio. Interromper o uso do mercúrio é uma situação emergencial. A Convenção de Minamata já estipula isso desde 2013, quando foi promulgada pelas Nações Unidas. O Brasil internalizou a Convenção em 2018, assumindo o compromisso de eliminar o mercúrio de todos os processos industriais. O mercúrio não é utilizado somente no garimpo, é utilizado na fabricação de lâmpadas, na indústria médica, para conservar vacina, conservar medicamento, no amálgama dentário, para produzir aparelhos de alta precisão, na indústria do cimento, na indústria do cloro-soda. Os países signatários da Convenção de Minamata precisam declarar que a atividade de garimpo não é uma atividade insignificante. O Brasil levou três anos para apresentar formalmente uma declaração de que a atividade garimpeira não é insignificante. Isso foi feito no final de 2021. Agora, o país tem mais três anos para apresentar um plano de ação para o enfrentamento do garimpo em seu território. Esse plano ainda não foi apresentado, mas deve contemplar entre suas ações a eliminação de mercúrio. Como as pessoas não vão deixar de usar ouro, a indústria da mineração, a indústria do ouro e as empresas que obtêm lucro com essa atividade deveriam reservar parte de seu lucro para investir em ciência, tecnologia e inovação em busca de soluções alternativas para o uso de mercúrio. Outro ponto fundamental é prestar assistência aos contaminados. Lamentavelmente hoje no Brasil não temos um centro de referência para acolher os afetados pela contaminação por mercúrio. Temos alguns centros especializados que fazem atendimento a pessoas que sofrem exposição ocupacional, principalmente na indústria, mas são centros bastante limitados. Não temos um centro de referência que atenda pessoas que são expostas ambientalmente, que vivem na Amazônia em áreas impactadas pelo garimpo. Esse é um tema que temos tentado pautar junto à sociedade e junto ao atual governo, que está sensível a essa pauta e quer ouvir especialistas de modo a que possamos resolver esse problema. 

Entrevista e edição: Heitor Shimizu

Publicado em: 20/04/2023
Entrevista concedida em: 15/02/2023
Foto Paulo Basta: arquivo pessoal

Foto destaque: Leo Otero / MPI - Agência Brasil

Revista FCW Cultura Científica v. 1 n 2 abril - junho 2023

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