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Saúde na Amazônia

Entrevista

Manuela Carneiro da Cunha

Antropóloga explica os motivos históricos, sociais, culturais e políticos que levaram à crise atual na Terra Yanomami e como o Estado brasileiro tem falhado em seu papel de proteger a população nas terras indígenas

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Sobre

A antropóloga Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha é professora titular aposentada na Universidade de São Paulo (USP) e foi professora doutora na Universidade Estadual de Campinas. É professora emérita na Universidade de Chicago, onde lecionou de 1994 a 2009. Foi titular convidada da cátedra Savoirs contre Pauvreté no Collège de France 2011-2012. É graduada em matemática pela Faculté des Sciences de Paris, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e fez pós-doutorado na Universidade de Cambridge. É membro da Academia Brasileira de Ciências, recebeu a Légion d'Honneur do Governo francês e o Prêmio Almirante Álvaro Alberto do CNPq.

Ao final da década de 1970, engajou-se na luta por direitos dos povos indígenas do Brasil. Foi cofundadora da Comissão Pró-Índio de São Paulo, que presidiu de 1979 a 1981, e presidente da Associação Brasileira de Antropologia de 1986 a 1988. Como tal, teve participação no processo constituinte. Na USP, fundou em 1986 o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo e dirigiu um projeto temático sobre História Indígena e do Indigenismo. Integrou o International Advisory Group do Pilot Program to Conserve the Brazilian Rain Forest, a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o Observatório de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça. Faz parte da Comissão Arns de Direitos Humanos desde 2019. Sua atuação em pesquisa envolve etnologia, história e direitos dos povos indígenas, escravidão negra, etnicidade, conhecimentos tradicionais e teoria antropológica. Entre suas publicações estão os livros “Os direitos do índio”, “Cultura com aspas”, “Negros, estrangeiros” e "Os mortos e os outros". Organizou, entre outras obras, “História dos índios no Brasil”, “Enciclopédia da floresta” , “Política Culturais e Povos Indígenas”. 

FCW Cultura Científica – A crise atual na Terra Indígena Yanomami é resultado de um conjunto excepcional de fatores, ampliados nos quatro anos da última presidência, ou é algo que nunca deixou de ocorrer por toda a Amazônia?
Manuela Carneiro da Cunha – Podemos datar de 523 anos a ocorrência de episódios extremamente nocivos às populações indígenas no Brasil. Há infelizmente uma tradição de corrupção, de violência e de fome, mas que adquire feições completamente diferentes conforme a época. Não vou recapitular cinco séculos de história, mas o importante é saber o que configura e o que é especial nesta crise. E eu acho que sim, os últimos quatro anos foram tremendamente deletérios. No governo Bolsonaro, houve pela primeira vez uma declaração explícita de que os indígenas não seriam protegidos, de que suas terras não seriam contempladas pela proteção que a União lhes deve. Houve também o desmonte de todo os organismos que faziam algum tipo de proteção tanto ambiental quanto de direitos humanos, o que resultou em uma verdadeira hecatombe. Em boa parte, isso foi resultado de uma inoperância declarada, o que é extraordinário, por que todos os governos anteriores sempre proclamaram que protegiam os índios e, de repente, temos um governo que declarou o contrário.

FCW Cultura Científica – Foi um sinal verde para uma nova corrida do ouro na Terra Yanomami, assim como ocorreu na década de 1980?
Manuela Carneiro da Cunha – É claro que o fato de o ouro ter subido bastante de valor nos últimos anos estimulou a corrida para terras indígenas e áreas de conservação ambiental, que são proibidas para o garimpo. Como sabemos, o garimpo faz um estrago e seus efeitos hoje em dia são muito piores do que há 40 anos. Quanto às invasões, se quisermos recuperar a história, houve uma muito grave no final dos anos 1980, que terminou, graças a Deus e graças ao fato de que o Brasil receberia uma reunião internacional extremamente importante, a ECO-92, que resultou na Convenção sobre Diversidade Biológica. O presidente do Brasil na época, Fernando Collor, quis fazer bonito e acabou fazendo algo muito importante. José Sarney, o presidente anterior, tinha insistido em criar “ilhas Yanomami”, mas toda a pressão tanto dos indígenas quanto da sociedade, da parte da sociedade que os apoiava, era por uma terra contínua. Isso fez toda a diferença, por que essas sociedades não subsistem em ilhas, em isolamento. Essa divisão é justamente uma das maneiras de destruir um povo. Então, o Collor decretou uma terra contínua para os Yanomami, conforme o desejo e a mobilização da sociedade [a Terra Indígena Yanomami foi estabelecida em 20 maio de 1992, pouco antes da ECO-92, realizada de 3 a 14 de junho]. Na época havia uma forte mobilização, em particular por meio da então Comissão pela Criação do Parque Yanomami, a CCPY, que foi fundada por Claudia Andujar, Bruce Albert e Carlo Zacquini. Esse mobilização levou à criação do Território Indígena Yanomami, que foi e continua sendo extremamente importante.

FCW Cultura Científica – A seção "Dificuldades na efetivação dos direitos territoriais", do projeto “Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil", que a senhora coordena com Sônia Barbosa Magalhães (UFPA) e Cristina Adams (USP), destaca que "uma coisa são os direitos territoriais reconhecidos pela Constituição aos povos indígenas, outra é a implementação desses direitos". Por que é tão difícil aceitar o direito coletivo ou o direito dos povos indígenas sobre suas terras?

Manuela Carneiro da Cunha – O difícil de aceitar não é o coletivo, embora seja uma certa anomalia no direito brasileiro que um território possa ser não individualizado e sim coletivo de um povo. Não existe propriedade privada dentro de terras indígenas, mas as pessoas têm direitos a uma série de coisas, sobre seus roçados, sobre sua obra, esses direitos persistem mas não são direitos de propriedade da terra. O problema não está em ser coletivo, o problema, a hostilidade dos vizinhos, é que há uma grande ganância por terra e se invoca todo tipo de pretexto para dizer que os indígenas são muito poucos para tanta terra. Dizer que eles estão obstruindo o progresso é uma velha maneira de justificar um anti-indigenismo que os indígenas conhecem muito bem, por que eles sabem que os vizinhos não indígenas estão contra eles e isso é verdade no Brasil inteiro.

FCW Cultura Científica – Por que estão contra eles?

Manuela Carneiro da Cunha – Por que não querem reconhecer o fato de que esses povos têm direitos anteriores a qualquer outro, por que estavam lá antes. São os direitos originários, que precedem a criação do estado brasileiro, precedem a Constituição. Um exemplo disso, que aprendi com o professor Dalmo Dallari, são os cantões suíços, que existiam antes do país Suíça. Eles tinham seu direito anteriormente ao país que se criou, a Suíça, e guardaram esses direitos originários. O mesmo vale para os povos indígenas, que estavam em seus territórios antes de quaisquer outros. Nesse sentido, os direitos deles prevalecem e isso é um bom princípio de direito, que foi defendido na Colônia, menos durante o Império, e também na República, por ninguém menos do que João Mendes Júnior, um grande jurista. São os direitos originários, que foram introduzidos na Constituição brasileira de 1988. Aqui eu aproveito para ressaltar que se costuma usar dois termos que legalmente são muito diferentes mas que são empregados como se fossem sinônimos. Muitas vezes se fala em “Reserva Yanomami”, mas isso não existe. O que existe é a Terra Indígena Yanomami, por que reserva, do ponto de vista legal, é outra coisa. É um território, também de usufruto exclusivo dos indígenas, mas que foi desapropriado pela União ou doado à União para que se alojassem povos indígenas e, portanto, foi destinado a eles, mas não era necessariamente a terra que ocupavam. Isso são reservas. E as terras indígenas, que são o assunto do artigo 231 da Constituição, são definidas de outro modo, são aquelas tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, em que existem direitos originários. Há também terras dominiais indígenas. Por exemplo, se um grupo indígena ou um povo indígena recebe em herança ou em doação uma terra, essa terra não é como as outras do ponto de vista legal, porque a propriedade dela é desses indígenas e não da União, embora o Estado continue tendo um dever de proteção sobre essa terra.

FCW Cultura Científica – Poderia falar sobre esse papel do Estado?

Manuela Carneiro da Cunha – A posse e o usufruto nas terras indígenas são exclusivas dos indígenas, mas o domínio, a propriedade, é da União, que também é responsável pela sua proteção. Isso é extremamente importante e é algo que o Estado tem que fazer e nem sempre faz. Quando há interesse e competição pelos bens que estão nessas terras, por exemplo ouro ou cassiterita, é nesse momento que a proteção do Estado é ainda mais importante. Isso faltou nos últimos anos e não só nos últimos quatro anos, é algo que tem se agravado por omissão dos governos.

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Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami (foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)

FCW Cultura Científica – Entre aqueles que defendem o garimpo em terras indígenas, um argumento é que a terra não seria somente dos povos originários mas de todos os brasileiros.
Manuela Carneiro da Cunha – A terra não é de todos. Uma terra indígena é especificamente destinada para um povo e um propósito. Da mesma maneira que áreas de conservação também não são de todos. Então, não são terras públicas nesse sentido, não são terras que estão abertas a qualquer um, pelo contrário, são terras que devem contar com proteção especial.

FCW Cultura Científica – O ex-presidente Bolsonaro disse que há no país “índios evoluídos”, que poderiam ter "mais liberdade sobre a sua terra". Por que o discurso de aculturação continua presente?
Manuela Carneiro da Cunha – Vamos ser objetivos, o que significou nesses séculos todos o que mais recentemente no século 20 se chamou de aculturação? Significou que os indígenas entraram como cidadãos de terceira ou quarta classe em uma sociedade já extremamente desigual. E por que era tão importante essa tal de integração? Isso foi feito sistematicamente a partir de 1850, com a Lei das Terras, e era uma maneira de tirar indígenas de suas terras, dar-lhes supostamente glebas e dizer que eles estavam já assimilados e que portanto aqueles territórios que tinham sido separados para eles não precisavam ser só para eles. Isso significou a perda de vários territórios originais. Foram distribuídos títulos tanto a indígenas quanto a não indígenas em áreas reservadas. Esses títulos entraram no mercado de terras, enquanto os territórios tradicionais não entravam e não entram até hoje. Então, essa história de assimilação não era simplesmente considerar que os indígenas tinham que participar do nosso tipo de sociedade, era um artifício: descaracterizando-os como indígenas, individualizando-os, destruindo-os enquanto sociedades autônomas, suas terras passavam a ser comerciáveis. Assim foi feito nos Estados Unidos, onde colocaram as terras indígenas no mercado. Foi o que ocorreu no Nordeste do Brasil. Quando vemos a distribuição de terras indígenas no país, o Nordeste, a região de colonização mais antiga, tem terras indígenas em áreas mínimas, ínfimas em relação ao que foram no passado. Como é que se conseguiu isso? Exatamente dizendo que os indígenas deveriam ser aculturados e, uma vez aculturados, deveriam perder qualquer diferença em relação aos outros brasileiros.

FCW Cultura Científica – Se não fossem aculturados, os indígenas poderiam ser considerados incapazes e ficariam sob a tutela do Estado, o que ocorreu até a Constituição de 1988.
Manuela Carneiro da Cunha – A história da tutela indígena, no Código Civil de 1916, foi uma espécie de gambiarra legal em que se pensou o seguinte: temos que proteger negocialmente algumas pessoas que podem ser enganadas facilmente. Em 1916 – e parece ridículo falar isso hoje –, também as mulheres casadas foram declaradas relativamente capazes, portanto estavam sob a tutela dos maridos. Se fossem maiores e solteiras podiam fazer seus negócios, mas se fossem casadas elas precisavam de tutela. Essa tutela não era para incapazes, por exemplo, crianças. Mulheres casadas não eram crianças assim como indígenas não eram crianças, mas eram pessoas que podiam ser facilmente enganadas, pelo menos era o que se supunha na época. Essa história de tutela foi usada como uma maneira de proteção, era essa a ideia, mas a rigor essa proteção negocial significava o que? Significava que indígenas – e mulheres casadas – se quisessem fazer um negócio, por exemplo, vender um boi, ou comprar algo, se o negócio fosse considerado prejudicial a transação podia ser desfeita. Se uma criança por exemplo vendesse o seu cachorro, o negócio era nulo, por que a criança, como incapaz, não poderia fazer uma venda, mas se um indígena ou uma mulher casada fosse vender o seu cão isso só era anulável se fosse considerado prejudicial. Então, há uma grande diferença. Essa tutela foi usada de várias maneiras que absolutamente não tinham nada a ver com a intenção inicial. Em vez de proteger negocialmente os indígenas, era usada para cercear sua liberdade, impedi-los de exercer seus direitos. Até 1988, muitos juizes consideravam que os indígenas não podiam entrar em juízo sozinhos e que só a Funai poderia representá-los. Como muitas das dificuldades dos indígenas eram justamente com a própria Funai, isso tornava os indígenas praticamente sem acesso à justiça. Isso acabou na Constituição de 1988, onde o artigo 232 diz que os indígenas, “suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo e
m defesa de seus direitos e interesses”. Isso acabou com a história da tutela indígena.

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Vacinação na aldeia indígena Umariaçu, próximo a Tabatinga, Amazonas (foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

FCW Cultura Científica – E quanto aos povos indígenas isolados?
Manuela Carneiro da Cunha – Os indígenas isolados não são isolados por que nunca tiveram contato com grupos externos, mas sim por que sofreram muito no passado justamente por causa desses encontros. Sofreram com a violência de invasores, fossem seringueiros, garimpeiros ou madeireiros. Depois dessas experiências muito negativas, eles resolveram se fechar e não querer mais contato e isso é uma decisão que tem que ser respeitada. No Brasil – e isso foi um grande avanço mencionado no mundo inteiro –, percebendo os estragos enormes quando se força o contato de um grupo isolado, desde 1987 os povos isolados têm o direito de permanecerem isolados até que manifestem o contrário. O que às vezes acontece, como no Acre há alguns anos, quando indígenas isolados pediram proteção por estarem sendo escorraçados por madeireiros de países vizinhos. É importante destacar que, quando esses contatos ocorrem, há um grande impacto para as populações isoladas, que não têm defesa epidemiológica contra problemas como gripe, catapora, sarampo, tuberculose e várias outras doenças. Então essas populações precisam ser vacinadas antes de qualquer contato para que não ocorra uma mortandade imediata.

FCW Cultura Científica – Doenças, fome e despopulação. Essas palavras podem ser aplicadas na crise atual na Terra Indígena Yanomami provocada pelo garimpo ilegal, mas foram usadas no início da década de 1960, quando o então Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi acusado de genocídio, corrupção e ineficiência e investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito.
Manuela Carneiro da Cunha – Foi um escândalo e é interessante destacar que a fundação do SPI, em 1910, foi justamente uma reação a outro escândalo, que foi o massacre de indígenas sobretudo em Santa Catarina e no Paraná. Isso provocou um repúdio internacional e, na esteira dele, criou-se o Serviço de Proteção aos Índios. O SPI, em 1967 , foi denunciado no relatório de um procurador que fez uma devassa, visitou os postos indígenas e percebeu vários abusos, violência, corrupção e conluio com pessoas que queriam se apoderar das terras ou dos bens e dos recursos dessas terras. Diante do escândalo, em 1967, o SPI foi extinto e se criou a
Funai

FCW Cultura Científica – Falar de saúde na Amazônia envolve hoje as questões das mudanças climáticas e da perda da biodiversidade. Como o conhecimento dos povos indígenas pode ajudar na conservação da biodiversidade?
Manuela Carneiro da Cunha – Os povos indígenas, assim como as demais populações tradicionais do Brasil – como quilombolas, caiçaras e muitas outras, algumas fortemente influenciadas por tradições indígenas –, adquiriram uma nova importância, por que se percebeu que neste momento de crise no planeta quem está segurando a floresta em pé e está mantendo a biodiversidade são essas populações tradicionais. Isso é flagrante quando se compara o desflorestamento nessas áreas com o desflorestamento médio em cada bioma. É muito claro que são essas populações que estão conservando e até aumentando a biodiversidade. Esse é outro aspecto que talvez valesse a pena lembrar, até na agricultura são essas populações, indígenas sobretudo, que estão não apenas mantendo como enriquecendo a agrobiodiversidade. Quando se fala de agrobiodiversidade, significa a diversidade das plantas cultivadas. O Alto Rio Negro, por exemplo, tem umas 200 variedades de mandioca e 100 de pimenta. Muitos povos indígenas consideram bonitas as roças que têm muita variedade. E essa diversidade é um serviço importantíssimo. Hoje se sabe que os indígenas pré-históricos foram autores importantes das florestas que conhecemos hoje e não só na Amazônia. No Sul do país, por exemplo, as florestas de araucária foram produzidas por grupos indígenas muito antes da Descoberta, ou Achamento, do Brasil.

Entrevista e edição: Heitor Shimizu

Publicado em: 20/04/2023
Entrevista concedida em: 11/02/2023
Foto da entrevistada: Leonor Calasans / IEA-USP 

Foto do destaque: Fernando Frazão / Agência Brasil

Revista FCW Cultura Científica v. 1 n 2 abril - junho 2023

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