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Saúde na Amazônia

Rubens Belfort Jr.

Um dos mais renomados oftalmologistas do país fala sobre os principais problemas que afetam a visão na Amazônia e como os projetos que coordena no Instituto da Visão e na Escola Paulista de Medicina têm contribuído para a melhoria da saúde na região

FCW Cultura Científica – Como começou seu interesse em realizar trabalhos em saúde na Amazônia e, mais especificamente, com saúde indígena?

Rubens Belfort Jr. – Sou formado pela Escola Paulista de Medicina (EPM), que é uma das instituições brasileiras de ensino superior com tradição mais antiga em trabalhos com povos indígenas. É uma tradição que vem desde a década de 1950 quando meu pai, Rubens Belfort Mattos, defendeu uma tese de livre docência na EPM sobre acuidade visual em indígenas, por que na época se achava que os indígenas enxergariam melhor do que o restante da população. O estudo teve apoio do Noel Nuttels e do Darcy Ribeiro, na época chefe da Seção de Estudos do Serviço de Proteção aos Índios, e foi feito com vários povos, como Karajá, Terena, Guarani, Kaigang, Kayapó, Xavante e Fulni-ô. Alguns anos depois, o Roberto Baruzzi, professor de medicina preventiva que tinha sido treinado na Bélgica, iniciou um trabalho contínuo de assistência médica com indígenas, inicialmente com Karajás no rio Araguaia e posteriormente com os irmãos Cláudio e Orlando Villas-Bôas no Xingu, antes mesmo da criação do Parque Indígena. Desde o início, o trabalho teve o apoio de professores na EPM e contou com a participação de alunos de graduação e residentes. Com o estabelecimento do Parque Indígena do Xingu, em 1961, foi criado um programa assistencial e de medicina preventiva da EPM no Xingu, com recursos nacionais e do exterior, por meio do qual se realizou também uma série de trabalhos científicos em doenças infecciosas e não infecciosas entre os indígenas da região. Várias doenças infecciosas foram estudadas, como malária, mansonelose, hanseníase e tuberculose, além da caracterização metabólica e comportamento da pressão arterial, glicemia, colesterol etc. Então, dentro dessa política, eu me interessei e passei a trabalhar com o Baruzzi desde o fim da década de 1960, ainda estudante de medicina. 

FCW Cultura Científica – Como era a filosofia do programa conduzido pelo professor Baruzzi?

Rubens Belfort Jr. – O trabalho do Baruzzi e da Escola Paulista de Medicina no Parque Indígena do Xingu podem ser resumidos, basicamente, em promoção da saúde dos povos indígenas interferindo o menos possível na cultura deles. Se por um lado mostrávamos aos indígenas a importância das vacinas para a prevenção de doenças e os benefícios da medicina ocidental, nunca interferimos nas pajelanças, nos tratamentos tradicionais e em toda a sua rica cultura. Não interferimos em sua maneira de viver e combater as doenças causadas pelo que conhecemos como vírus ou bactérias e que eles chamam de espíritos. O que sempre tivemos muito claro foi que era preciso trabalhar ao lado dos indígenas, líderes, pajés ou a população como um todo. Foi assim sempre e isso acabou levando à criação de outras iniciativas voltadas à saúde indígena no Departamento de Oftalmologia da EPM, no Instituto da Visão e em muitas intituições, graças ao trabalho do Baruzzi e, em seguida, dos professores Douglas Rodrigues e Sofia Mendonça

FCW Cultura Científica – Foi nessa época que o senhor estudou, junto ao povo Yanomami, a oncocercose, doença causada por infecção de um verme parasita e conhecida como "cegueira dos rios"?

Rubens Belfort Jr. – Isso foi na década de 1970, quando o Baruzzi conseguiu financiamento para que eu investigasse alterações visuais da oncocercose entre os Yanomami na região da fronteira com a Venezuela. Foi então que identificamos pela primeira vez no Brasil casos de oncocercose ocular, que é uma das principais causas de cegueira por infecção. É uma doença terrível transmitida por insetos infectados com larvas de um parasita, a Onchocerca volvulus. É um problema que aumenta com a existência do garimpo, pela maior densidade demográfica e mobilidade populacional. Desde aquela época já se sabia dos problemas causados pelo garimpo ilegal na região e da necessidade de instauração de um plano estratégico para evitar que os indígenas fossem dizimados e a floresta destruída. 

FCW Cultura Científica – Esses trabalhos foram continuados com os projetos amazônicos do Instituto da Visão?

Rubens Belfort Jr. – Sim, sempre com o apoio da EPM-Unifesp. O Instituto Paulista de Estudos e Pesquisas em Oftalmologia (Ipepo), mais conhecido como Instituto da Visão, é uma entidade filantrópica criada na década de 1980 por docentes do Departamento de Oftalmologia da EPM. Na época, alguns professores da EPM, como o Walton Nosé, realizávamos cirurgias na população desassistida da Amazônia, em parceria com o Jacob Cohen, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e Fundação Piedade Cohen. Essa semente levou a uma parceria muito forte também com as principais indústrias de oftalmologia e de óculos. Passamos a conduzir projetos para atender muitas localidades na Amazônia, dirigindo por estradas difíceis e navegando por rios, sempre tratando de estabelecer colaborações entre médicos, demais integrantes de equipes de saúde, a indústria e, posteriormente, com a Marinha do Brasil. A Marinha sempre apoia nosso trabalho, com transporte de equipamentos e pessoal, além de oferecer segurança, muitas vezes com fuzileiros navais em locais mais perigosos. 



"Em toda a Amazônia, a causa mais importante da baixa visão é a falta de óculos, principalmente para perto", diz Belfort Jr. (foto: Ipepo)


FCW Cultura Científica – A catarata também é um grande problema em áreas desassistidas? Rubens Belfort Jr. – É o problema mais comum depois da presbiopia, a dificuldade de enxergar de perto. Talvez por uma questão ambiental, a incidência de catarata é maior na Amazônia do que no Sul do país, além de ocorrer mais precocemente. O indivíduo com catarata acaba não conseguindo enxergar e a solução está em uma cirurgia delicada e que deve ser planejada e executada adequadamente. Com o apoio e a estrutura de que dispomos, em nossas missões conseguimos operar até cerca de 100 pacientes por dia e mais de 10 mil cirurgias já foram realizadas. Mas a Amazônia precisa de muito mais e, para isso, temos que ter apoio para aumentar a abrangência de programas como o nosso. 

FCW Cultura Científica – Como e onde são feitas essas cirurgias de catarata? Rubens Belfort Jr. – Em nossa estratégia, optamos por não construir centros para operar catarata, por que a experiência mostra que isso não apresenta um custo-benefício adequado. Fazemos o contrário, sob a liderança do grupo de Manaus, do professor Jacob Cohen. Residentes vão antes nas localidades escolhidas, realizam a triagem dos pacientes com maior probabilidade de precisar de cirurgia e, quando chegamos, revisamos os pré-selecionados e utilizamos os hospitais daquele município como nossa base de trabalho. Transformamos a sala de cirurgia geral em sala oftalmológica, montamos todo o equipamento, operamos e depois vamos para outra cidade, sempre com a mesma estratégia. Residentes ficam onde nós operamos para fazer o pós-operatório. 

FCW Cultura Científica – Há outras doenças importantes que afetam a visão da população na Amazônia? Rubens Belfort Jr. – Depois da catarata, temos o pterígio. É uma causa extremamente importante e identificada recentemente, por nosso grupo, de perda visual e cegueira na Amazônia. Pterígio é um crescimento da conjuntiva, a parte branca do olho, sobre a parte transparente, que é a córnea. Se não for operado, pode causar uma baixa de visão importante e muitas vezes é preciso fazer transplante de córnea para resolver o problema. Com frequência são pacientes jovens e com baixa visual em ambos os olhos. O tratamento do pterígio envolve cirurgias mais complexas e demoradas do que a catarata e com pós-operatório longo e em que pode haver recidiva. Também o glaucoma tem gravidade maior na Amazônia.  É importante destacar que a população na Amazônia está aumentando mais do que a média nacional e novos problemas de saúde vão aparecer. É o que se pode esperar da oncocercose e talvez a mansonelose, doenças negligenciadas transmitida por mosquitos ou moscas. Se até a década de 1970 só existiam indígenas em muitas áreas, hoje há muitos fazendeiros, garimpeiros, então o risco de contrair uma doença e disseminá-la é cada vez maior. Não temos uma boa vigilância epidemiológica na Amazônia e é fundamental verificar o que está acontecendo e estabelecer estratégias. 


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